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Versatilidade da lã de ovelha permite a criação de diversos produtos, que vão de roupas a brinquedos, fadas de cores suaves, móbiles delicados, bonecos e até mesmo itens de vestuário.



Uma das técnicas mais antigas que existem, com registros de mais de 6.500 anos, a feltragem utiliza lã pura de ovelha que, manipulada com água e sabão ou agulhas, pode ser moldada

nas mais variadas formas. A versatilidade e a flexibilidade do material permitem a criação de pro-

dutos que vão desde roupas e calçados até utensílios de decoração, adornos e brinquedos que têm como característica a maciez, a forma orgânica, a autenticidade e uma textura inigualável.

Diferente do feltro encontrado em armarinhos, que é composto por fibras sintéticas como o poliéster, a feltragem emprega a lã penteada das raças Corriedale e Merino e é produzida de forma totalmente artesanal. A fibra natural é encontrada em lojas especializadas em forma de meadas, com tingimento natural ou na cor original da ovelha, que pode variar de creme claro, tons de cinza, até marrom escuro.


Origens


Mais antiga técnica têxtil de que se tem notícia, a feltragem surgiu antes mesmo da fiação, da tecelagem e do tricô. Não se sabe precisamente qual a sua origem, mas existem algumas lendas sobre o seu início. Uma delas conta que, Noé descobriu um tapete no interior da sua arca e,

curioso, ficou tentando descobrir como ele teria se formado. Foi quando percebeu que o chão estava forrado de pelos dos animais, que, ao urinarem e pisotearam em cima, acabaram os transformando em um felpudo tapete.


Ao longo do tempo, a técnica milenar tem sido empregada por diversas culturas como os nômades da Ásia, os guerreiros da China e os soldados de Roma. Também foram encontrados vestígios do material na Turquia, na Escandinávia e na Mongólia, onde os pastores a utilizavam para a fabricação do yurt, tenda circular que, devido à capacidade térmica da lã, fornece proteção contra o calor e o frio. Essa tenda era carregada pelos nômades em suas migrações em busca de melhores pastagens para seus rebanhos.


Processo


Existem duas formas de trabalhar a lã: a feltragem com agulhas ou a molhada. Cada método resulta em uma textura específica e é aplicado dependendo dos atributos que se procura, como resistência ou fluidez. Na técnica em que se utiliza água quente e sabão (wet felted), as fibras naturais são friccionadas e lubrificadas pela humidade e calor e, com isso, se condensam, formando um sólido tecido. Este processo de fricção atinge cerca de 5% das fibras, por isso é preciso fazer o movimento de modo contínuo para que se alcance uma superfície maior. Neste caso, é mais comum que se utilize a lã merino, por se tratar de uma fibra mais fina, lisa e comprida, características que facilitam o seu entrelaçamento. Tapetes, tendas, calçados, vestimentas e acessórios decorativos podem ser feitos com esta técnica.


Na feltragem com agulhas, ou needle felted, as fibras da lã são unidas por meio de uma agulha

específica de feltragem, utilizando-se uma base de espuma. Neste método, a lã vai sendo esculpida de acordo com a quantidade de agulhadas e, assim, é possível criar uma infinidade de formatos. Também chamada de feltragem à seco, normalmente utiliza a lã da variedade Corriedale, que tem as fibras mais curtas e espessas e por isso se molda melhor à agulha. Sem precisar de nenhum tipo de costura, as fibras se unem por meio do atrito gerado pela agulha, que possuem diversos tamanhos e formatos, e são escolhidas de acordo com o objetivo que se quer alcançar. Por meio da feltragem com agulhas, é possível criar animais, bonecos, fadas e ainda fazer aplicações em bases feltradas para a criação de painéis, por exemplo. Ambas as lãs utilizadas para a feltragem – Merino e Corriedale – são encontradas em criações de ovinos no Brasil, especialmente na região do Pampa, no sul do País, onde o clima e a altitude são considerados ideais para o desenvolvimento saudável dos animais. Existem algumas características essenciais que diferem as duas espécies, como a textura, o comprimento e a espessura da lã, medida em micrômetros. A Merino é mais fina e tem em torno de 21 a 22 micrômetros e a Corriedade, com maior espessura, mede 29,5 micrômetros.


Embora o senso comum considere a Merino a melhor em termos de qualidade, nem sempre isso é

verdade, explica o proprietário da Fios da Fazenda, Marco Righi. “Por ser mais grossa, a Corriedale é indicada para trabalhos com agulha por gerar maior aderência e, por isso, se moldar mais facilmente na definição de formas”, explica. Já a Merino, pela espessura tênue, é a mais recomendada para a feltragem molhada, sendo que as suas microescalas são entrelaçadas mais facilmente por meio do atrito e fricção gerados com a água e o sabão. Independentemente dos atributos inerentes a cada tipo de lã, ambas são consideradas materiais de alta qualidade que, entres outras características, são hipoalérgicas.


Produção


Mesmo que ainda seja considerada uma matéria prima cara, o preço acaba se justificando pela alta qualidade e por ser um produto 100% natural, biodegradável e renovável. No Brasil, a grande maioria dos produtores de lã se concentram no Rio Grande do Sul, que soma um rebanho de mais de 2 milhões e meio de ovinos e responde por 95% da produção nacional de lã. Boa parte é exportada, inclusive para a Europa e Taiwan.


Este é o caso da Fios da Fazenda, empresa que se dedica à produção de lã no interior do Rio Grande do Sul. Righi, que administra as atividades junto com a família, percebeu a demanda por fios mais finos que pudessem ser utilizados em trabalhos manuais. Porém, a região de São Pedro do Sul, onde fica localizada a propriedade, não é a mais adequada para a criação das ovelhas das raças produtoras de lã. Foi então, que passaram a importar o material de criadores de Bagé e São Gabriel, no interior do Estado. “Passamos a nos responsabilizar pela parte do beneficiamento e da venda”, conta Marco.


Em busca de valorizar o processo do fazer artesanal, boa parte da lã é tingida com corantes naturais partindo de ingredientes como a carqueja, o fruto índigo e o besouro cochonilha. Para dar conta de oferecer uma maior quantidade de cores, são empregados também corantes tradicionais, que permitem um leque maior de tons.




Mesmo assim, o processo continua predominantemente feito à mão. “O tingimento é realizado

em uma panela e, depois, as lãs secam ao ar livre na cerca da fazenda”, explica o proprietário, que percebe um interesse cada vez maior pelas lãs naturalmente coloridas, como os tons de cinza e marrom característicos da raça Corriedale.



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boneca Abayomi, importante símbolo de resistência negra na cultura brasileira, foi criada pela artesã maranhense Lena Martins no final da década de 80


Muito provavelmente você já viu de perto ou pelo menos ouviu falar das Abayomis, bonecas pretas, feitas de tecido, sem cola e sem costura. É provável também que você tenha tomado conhecimento sobre elas a partir de uma narrativa que credita a origem das bonecas a Diáspora Africana. Segundo circula por aí, as Abayomis teriam surgido quando mães escravizadas, sendo transportadas em navios negreiros, utilizariam retalhos das suas próprias roupas para criar os brinquedos para os filhos.


No entanto, a boneca tem origem muito mais recente, foi criada em 1987, no Brasil, pela artesã Lena Martins. Filósofa e ativista, nascida em São Luiz (MA), a educadora popular e militante do Movimento das Mulheres, criou a boneca no final dos anos de 1980, junto ao movimento negro, em paralelo aos atos de rememoração dos 100 anos da abolição.


A boneca fez tanto sucesso, se espalhando pelo Brasil e pelo mundo, que em 1988 foi criada no Rio de Janeiro a Cooperativa Abayomi, iniciativa que contribuiu fortemente para a autoestima e reconhecimento da identidade afro-brasileira.


Ainda assim, Lena conta que no final dos anos de 1990, começou a surgir uma lenda para o nascimento da boneca: “Não sei dizer porque surgiu a história dos navios negreiros, sou artesã e não historiadora. O que sei é da minha história e de como ela aconteceu. Hoje, dou muitas oficinas e pretendo fortalecer a autoestima da população afro-descendente”, diz Lena, reafirmando a importância do reconhecimento autoral de seu trabalho - mulher negra - desenvolvido justamente para e afirmação de seu povo.



Boneca brasileira


Na época da criação da boneca, Lena já confeccionava produtos e vendia em uma feira de artesanato no Rio de janeiro, mas com muita gente fazendo o mesmo, quis criar algo original, e que não exigisse máquina de costura. Como havia crescido em meio ao trabalho da mãe, costureira, cercada por retalhos e restos de tecidos, inspirou-se em suas brincadeiras de infância.


Profundamente envolvida com o Movimento de Mulheres Negras, Lena conta que foi nesse contexto que a boneca ganhou maior repercussão, e conforme o interesse pelas bonecas Abayomi foi ganhando mais espaço, foi criada a associação, reunindo um coletivo de mulheres que realizavam exposições e ações focadas na cultura popular. Neste período, Lena passou a dedicar seu tempo também a educação por meio de oficinas que, inicialmente, aconteciam em comunidades do Rio de Janeiro, especialmente nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs).




Hoje, Lena já não produz uma quantidade muito grande de bonecas como fazia antigamente. Atualmente, está mais focada em confeccionar modelos em tamanho real ou cenas para serem fotografadas. A artesã também enveredou pelo campo literário, onde deixou fluir a sua vertente escritora. O livro infantil Vida que voa, lançado em 2011, conta sobre as sabedorias compartilhadas entre avó e neta e é ilustrado com as bonecas Abayomi.

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Renda de Bilro, Florianópolis. crédito: Natalia Seeger

Que vivemos em tempos de polarização política todo mundo sabe, mas você já parou para pensar que isso também ocorre com a tecnologia? Enquanto alguns aderem a toda e qualquer novidade tecnológica, sem nenhum tipo de objeção, outros resistem à virtualização da vida, desconfiados dos impactos que as mudanças tecnológicas possam causar. Diante deste Fla x Flu, não é incomum que, nós, adeptos e amantes das manualidades têxteis, estejamos mais para o lado dos tecnofóbicos, do que o inverso.


No entanto, esta disputa pareçe contraproducente, já que para o filósofo chinês Yuk Hui - autor do livro Tecnodiversidade, Editora Ubu, 2020 - este é apenas o sintoma de uma cultura monotecnológica. Sim, para o autor, a tecnologia não é antropologicamente universal, seu funcionamento é baseado e assegurado por cosmologias particulares que ultrapassam a simples funcionalidade ou utilidade da técnica. Sendo assim, é preciso confrontar a ideia universalista da técnica, se não quisermos seguir favorecendo uma história tecnológica fundamentalmente europeia. Ou seja, fundada na corrida por um futuro tecnológico cada vez mais homogêneo e apartado de qualquer qualidade ética ou moral. Para Hui, dar vazão à multiplicidade de cosmotécnicas existentes no mundo é, em seu âmago, um projeto de decolonização.





“O que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, maia? E, para além das formas de arte e artesanato indígenas a serem preservados, como essas cosmotécnicas poderiam nos inspirar a recontextualizar a tecnologia moderna?” (p.18)


Neste sentido, Yuk Hui propõe que todas as culturas não europeias deveriam sistematizar suas próprias cosmotécnicas e histórias, o que significa a unificação que cada povo fez/faz entre localidade, moral e técnica para a criação de produtos ou obras de arte. Isto nos permitiria enfrentar também a narrativa corrente de um tempo linear “pré-moderno, moderno, pós-moderno e apocalipse”, marco pelo fim da humanidade e ascensão das máquinas.



Para além da tradição, mas junto com ela


Talvez uma das partes mais interessantes do pensamento de Hui seja compreender o valor simultâneo da tradição e transformação. Para ele, a questão não está entre defender ou abrir mão dos costumes ancestrais, mas em como canalizá-la em termos de conhecimento para o mundo moderno. “Se quisermos reagir às perspectivas de autoextinção global, precisaremos retornar a um discurso cuidadosamente elaborado sobre localidade e a posição que o humano ocupa no cosmos.”


Seres humanos se formam em mundos simbólicos e linguísticos variados, e por isso, suas técnicas não são apenas instrumentais, mas se relacionam com suas localidades, crenças e repertórios de vida. Isto não se resume, por exemplo, a diferentes formas de tricotar ou tingir tecidos, tendências técnicas que se encontram em qualquer civilização, mas fatos técnicos atributos particulares que variam de uma civilização para a outra.


No pensamento tradicional chinês, por exemplo, a história da técnica se dá muito mais pela sua relação moral e espiritual do que estética e funcional. A forma é usada apenas como meio para transcendência e aguçamento dos sentidos.


As nossas cosmotécnicas


Quais são, então, as cosmotécnicas brasileiras? Instigado por encontrar estas respostas que o Instituto Urdume inicia 2021 disposto a vasculhar o tema, ao menos no que diz respeito ao têxtil, no país. Um trabalho que obviamente não começa do zero, visto o número de pesquisadores, artesão, artistas e cientistas que já exploraram os fazeres técnicos do país, mas que se propõe a olhar por este recorte, que busca a relação entre tradição e contemporaneidade, sustentado fios de interdisciplinaridade.


Para nós, da Urdume, a questão é compreender como as técnicas manuais têxteis se configuram atualmente, e podem vir a se configurar no futuro - ancoradas em nossa ancestralidade - ao mesmo tempo em que dialogam com questões pertinentes à humanidade enquanto espécie, como a ecologia e cibernética, por exemplo.


Ao retornarmos ao livro de Adélia Borges, Design + Artesanato: o caminho brasileiro, publicado em 2011, por exemplo, é curioso percebermos como ao descrever o artesanato brasileiro, ela faz uma fina e precisa distinção entre aquilo que é feito coletivamente, que são ou podem ser reproduzidos em série, e cuja a técnica é transmitida geracionalmente (e assemelha-se ao que se encontra no resto da América Latina, África e Índia), daquilo que se entende por craft em outros países, como os nórdicos, e dizem respeito a fazeres aprendidas em cursos técnicos e universitários, exercida primordialmente por pessoas instruídas e que vem na atividade uma forma de autoexpressão.




Se por um lado, o número de artesãs têxteis não diminuiu, por outro, em dez anos cresceu exponencialmente o número de “crafteiros” no país. Pessoas graduadas e cosmopolitas que buscaram o fazer à mão como segunda opção de carreira ou forma de expressão. Crescimento que certamente podemos creditar à aceleração da comunicação e troca de informação gerada pelas redes sociais e já nos fazem encontrar atualmente um cenário distinto da última década.


No entanto, se podemos celebrar o retorno ao fazer das mãos, e a aproximação de fazeres de troca intergeracionais, é possível também questionarmos porque somos hoje, neste movimento de retorno, mais “crafteiros” do que artesãos? Qual o impacto dos meios digitais que usamos para nos informar nessa concepção? E como podemos, reconhecendo e reconstruindo nossas histórias técnicas, chegar ao “artesão-crafteiro”? Esses são uns dos questionamentos que nós convidamos vocês a nos ajudar a responder.




O Instituto Urdume segue com sua campanha de financiamento coletivo: contribua agora e faça parte da construção do mapeamento têxtil do Brasil com a gente.


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