No percurso artístico que venho desenvolvendo, a investigação por materialidades e procedimentos têxteis é geralmente o ponto de partida de meu trabalho. Digo geralmente, pois essa questão nem de perto chega a ser uma regra exata, já que, mesmo que a maioria dos trabalhos extrapolem a esfera do têxtil para acontecerem em outras mídias como fotografias, vídeos, performances e instalações, as construções têxteis não deixam de existir. de serem produzidas, tendo um espaço importante no corpo de trabalho.
Alia-se a isso, o interesse por explorar a carga de memória real ou inventada que habita nos materiais que utilizo: roupas, retalhos de tecidos, pequenos objetos e embalagens provenientes de doações, acúmulos ou descarte que se constituem como uma estratégia para interferir no destino e na permanência das coisas no mundo.
Gosto muito da fala de Sonia Gomes, uma das artistas que é referência para o meu trabalho ao dizer que:
Os artigos têxteis se lembram. Não se trata de algo que necessariamente pedimos que façam, ou que podemos evitar que aconteça. Eles se lembram e pronto. E a memória têxtil é absolutamente democrática: momentos de alegria e tragédia são gravados na superfície e tornam-se parte da estrutura do tecido, sem permissão e frequentemente de forma não intencional. Os tecidos se lembram, em parte, porque são reféns de sua própria fragilidade. Ao contrário do metal ou da pedra, o tempo de vida do tecido não é diferente do de nossos próprios corpos: o novo é gradualmente substituído pelo uso e desgaste, até ficar velho e puído. (GOMES in CARNEIRO, 2018, p. 76)
E eu não poderia estar mais de acordo com essa reflexão de Sonia, principalmente pela relação que ela estabelece entre os tecidos e os corpos, seus ciclos de existência, passagem, permanência e resiliência.
Neste caminho, investigar o têxtil enquanto campo prático, teórico e de saberes relacionados ao feminino e também, à bagagem ancestral que a ele está impregnado vem conduzindo a observação mais atentamente de alguns aspectos sobre a dimensão ritualística que envolve os fazeres manuais e as práticas de repetição.
Tenho interesse em pensar a relação desencadeada pelo fazer continuo, em que o corpo, através das mãos executa movimentos que se repetem, mas que, no meu caso, não são decorrentes de um processo de reprodução, já que não sigo receitas ou modelos pré-definidos. Neste processo, exploro as práticas de reinvenção como parte importante na reflexão dos processos têxteis como um caminho que entrelaça memórias, afetos e conhecimentos.
Da mesma forma, são tensionadas relações entre o feminino e o doméstico, noções de identidade e não pertencimento e a existência de corpos ficcionados para criar fabulações sobre outras naturezas. Há algum tempo venho explorando questões envolvendo o corpo entrelaçado ao têxtil e com mais frequência, vem sendo um elemento recorrente em minha pesquisa, aparecendo de formas distintas em meu trabalho.
Por um lado, está o corpo subentendido, que não está presente, mas que conseguimos intuir que ele foi necessário para a produção do trabalho. Um corpo invisível, que é presença pelos vestígios que produziu. Um corpo-ferramenta, que é o elo entre a ideia e a materialidade. Por outra parte, nessa mesma direção, existe o interesse em pensar no corpo em partes, onde mão, cabeça ou órgão adquirem protagonismo, seja ele formal ou conceitual, real ou ficcionado, tratado como um elemento explícito ou então, de cunho intimista e pessoal.
E ainda, um terceiro prisma, em que o corpo é entendido como uma extensão, uma continuidade da peça têxtil, a tal ponto que não pode ser separado desta. Um corpo-escultura, que não se apresenta através de uma forma definida, definitiva e reconhecível.
Corpo-casa, corpo-território, corpo-refúgio, corpo-prisão. Corpo-mulher, corpo-bicho. Corpo-papel, tecido, linhas e trapos. Corpo-sem órgãos, corpo-sem corpo um “corpo-“ que pode ser muitas coisas, assumir diferentes formas e até mesmo, possuir uma forma que não seja de um corpo, sem limites e delimitações.
Neste ponto, poderia considerar o dito até aqui e falar de algum de meus trabalhos em que a relação entre o têxtil e o corpo estivesse mais evidente, no entanto, opto por falar de um trabalho recente em relação a estas questões e que me parece pertinente tratar.
Carnação é um trabalho que pertence à Série Rasgo, pesquisa que venho desenvolvendo desde 2018. Esta série se constitui por tecelagens produzidas em um tear de pregos de 160 x 180 cm em que utilizo materiais provenientes do uso doméstico, sendo eles tecidos de lençóis, fronhas ou colchas, ainda, jogos americanos, “jogos de cozinha”, toalhas de mesa e panos de prato que são rasgados e transformo em fio para servirem de matéria para construir as tramas.
O ato de rasgar as coisas da casa, artigos pertencentes a esse lugar quase sacralizado como espaço feminino e da vida privada tem um certo peso e leva acoplado um desejo de ruptura. Um processo de desmanchar coisas que já não possuem mais “utilidade” ou não são mais queridas, para transformá-las em outras coisas. “Desfazer para refazer” não é somente uma etapa de transformação do material, que é importante também, já que implica em responsabilizar-se com aquilo que se acumula, com hábitos de consumo e sobretudo, o descarte daquilo que já não serve.
Mas além disso, ainda, dialoga com questões internas que carrego acerca da construção do feminino e da necessidade de luta constante para uma existência mais justa e livre para as mulheres. Sonia Gomes traz outra reflexão sobre essa questão a qual considero importante compartilhar:
Como eu disse, o material que é o tecido te permite uma não limitação de tudo, e é totalmente essa liberdade que entendo como o feminino. Paradoxal, já que liberdade é tudo o que a mulher não teve. Acho que a não limitação é feminina, a possibilidade. Essa liberdade. E é exatamente isso tudo o que a mulher luta para ter, é tudo que socialmente ela não tem. (GOMES in CARNEIRO, 2018, p. 79).
As peças da série Rasgo são produzidas tendo presentes essas inquietações e ao mesmo tempo, anunciam um caminho muito pessoal e simbólico de construção de uma ruptura que inicia pelo material e conecta-se com o desejo de mudança. Elas são feitas de três em três e vão formando grupos ou famílias, como gosto de chama-las por fazer referência ao contexto doméstico de onde o material é proveniente.
Carnação é a primeira peça da série em que o corpo surge como um elemento em diálogo direto com o têxtil. Segundo o dicionário da língua portuguesa “Carnação” significa a cor da pele ou da carne humana, ainda, representação do corpo humano nu e com a cor natural. Não penso ter ouvido esta palavra anteriormente, até ela chegar para mim por meio de um sonho, o qual não lembro muito bem, mas que ao acordar, tinha nitidamente essa palavra na cabeça. A partir daquele momento adotei essa palavra para designar as peças que venho produzindo nesse grupo como se ela definisse perfeitamente o meu modo de pensar sobre esses trabalhos. Essa palavra já dizia algo por mim, mesmo antes de conhecer seu significado mas que para mim, indicava um lugar de existência, quase que onírico, de aconchego e passagem. Um lugar “entre” mundos, um lugar intuído, onde as naturezas são híbridas e estão em constante transformação. Corpo-carne, feito de entranhas que escapam pelas frestas, corpo-trama, feito de fios, cordas e tecidos que juntos vão compondo uma paisagem incerta, com formas infinitas que se atualizam e recombinam sem muita definição.
2 Me apoio aqui no conceito de “corpoescultura” formulado por Vera Pallamin referente à obra de Louise Bougeois de que o corpo passa a ser formulado como sujeito e objeto das obras. “Corpoescultura vai ao interior do interior, sediando-se na imaterialidade de um corpo profundo que desafia os perigos do olhar. Suas elaborações artísticas acionam um poder de acesso ao sensível feminino, com uma potência fecunda advinda de uma auscultação de si mesma, das entonações de suas memórias, de suas turbulências”. (PALLAMIN, 2006, p.108)
3 Referência ao “Corpo Sem Orgãos – noção de Antonin Artaud e retomada por Gilles Deleuze e Féliz Guattari. “A guerra aos órgãos e suas funções estabelecidas que aprisionam o corpo, por exemplo, em identidades fixas masculina e feminina: uma guerra aos órgãos que compõem organismos estruturantes.” (DE LAURENTIIS, 2017, p. 85)
Referências
CARNEIRO, Amanda; FONSECA, Raphael (orgs). Sonia Gomes: a vida renasce/ainda me levanto. Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC) e Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). São Paulo, MAC: Niterói: MASP, 2018.
DE LAURENTIIS, Gabriela. Louise Bourgeois e modos feministas de criar. São Paulo: Annablume, 2017.
PALLAMIN, Vera. Corpoescultura: o olhar, a metáfora, o abismo. Revista LOGOS Uerj, 2006. (Acessado em 20/01/2023 https://www.researchgate.net/publication/230808506_Corpoescultura_o_olhar_a_metafora_o_abismo)
Mônica Lóss é formada em Artes Visuais. Atualmente vive e trabalha como artista visual em Dallas, USA e nos últimos anos tem participado de exposições em diversas instituições no Brasil, Estados Unidos, México e Europa.
Mais informações em www.monicaloss.com