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  • 14 de fev.
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Emanuele Coccia e Alessandro Michele, autores de La Vita delle Forme. Filosofia del Reincanto
Emanuele Coccia e Alessandro Michele, autores de La Vita delle Forme. Filosofia del Reincanto

A função da roupa vai além da funcionalidade do vestuário, ela envolve a forma como nos relacionamos com o mundo e como nos expressamos através da materialidade. As roupas não são apenas artefatos utilitários, mas manifestações de nossa identidade, história e experiência sensorial. Em A Vida Sensível, Emanuele Coccia explora a ideia de que a existência não se limita ao interior do ser, mas se estende aos objetos e meios que nos cercam, tornando o sensível um componente essencial da vida. Já em La Vita delle Forme. Filosofia del Reincanto (sem edição no Brasil), Coccia e Alessandro Michele aprofundam a noção de que a moda não é apenas um reflexo cultural ou social, mas uma linguagem própria, capaz de transformar e ressignificar a forma como habitamos o tempo e o espaço.


"A moda é um meio através do qual a vida se liberta e se reinventa, enquanto a filosofia é o instrumento que permite que o pensamento se manifeste em diversas formas. Assim, uma peça de roupa pode ser tanto um objeto físico quanto um suporte para a expressão de ideias e conceitos."

O conceito de "vida sensível", conforme apresentado por Emanuele Coccia, sugere que os viventes não existem apenas dentro de si, mas também nos meios que os circundam. Dessa forma, roupas, calçados e acessórios são parte fundamental da construção de nossa identidade e expressão. A relação entre moda e filosofia destaca-se nesse contexto. A moda é um meio através do qual a vida se liberta e se reinventa, enquanto a filosofia é o instrumento que permite que o pensamento se manifeste em diversas formas. Assim, uma peça de roupa pode ser tanto um objeto físico quanto um suporte para a expressão de ideias e conceitos. Esse paralelismo entre moda e filosofia desafia preconceitos históricos que separaram as artes mecânicas das artes liberais, uma distinção que marginalizou trabalhos manuais como a costura e a pintura em relação às formas "mais nobres" de expressão intelectual.


A evolução da moda também pode ser compreendida a partir de uma perspectiva histórica. Durante séculos, as roupas refletiram a posição social, o gênero e a profissão dos indivíduos. No entanto, com as transformações sociais e culturais, a vestimenta passou a ser um meio de subversão e experimentação, permitindo que os indivíduos transcendam categorias fixas de identidade. A moda contemporânea possibilita não apenas a autoexpressão, mas também a ressignificação do tempo e da história. O conceito de contemporaneidade abordado por Giorgio Agamben reforça essa ideia, ao destacar que ser verdadeiramente contemporâneo significa não coincidir perfeitamente com o presente, mas sim abrir espaço para novas possibilidades temporais.


O poder de transformação da roupa


Segundo Coccia e Michele, a repetição na moda é um elemento essencial. Ao longo do tempo, as formas e estilos se repetem, mas essa repetição não é meramente cíclica; ela permite a reinvenção e a ressignificação. Criar roupas ou definir um estilo pessoal torna-se, assim, um exercício semelhante à prática de místicos que repetem gestos e palavras até esvaziá-los de significado original, abrindo espaço para novas interpretações.


"Se os animais passam por metamorfoses naturais, os seres humanos fazem isso através das roupas, assumindo novas identidades ao vestir determinadas peças. "

A "troca de pele" é outro aspecto fundamental. A moda possibilita transformações que seriam impossíveis apenas com a biologia. Se os animais passam por metamorfoses naturais, os seres humanos fazem isso através das roupas, assumindo novas identidades ao vestir determinadas peças. Essa dimensão animista da moda permite uma troca simbólica entre o ser e o mundo, criando novas formas de interação e compreensão.


Por fim, a moda pode ser entendida como uma espécie de "medicina sensível", um meio de cura e transformação do ser. Assim como a alquimia buscava a transfiguração dos elementos, a moda oferece a possibilidade de renovação constante da identidade, permitindo que o indivíduo experimente diferentes formas de existir no mundo. Mais do que um instrumento de estética ou consumo, a roupa é apresentada como um espaço de reflexão, liberdade e potencial criativo, reforçando a ideia de que o corpo humano não é apenas um organismo, mas um campo de alianças e significados que se expandem através das vestimentas.




A relação entre mitologias, ancestralidade e as metáforas com o fio percorre diversos campos do conhecimento e das narrativas humanas. Essa conexão está presente desde as mitologias gregas, africanas e indígenas (como vimos no texto passado) até as construções narrativas da literatura ocidental. No entanto, a maneira como essas histórias são contadas foi se transformando ao longo do tempo, passando de narrativas cheias de texturas e tecidas coletivamente para estruturas cada vez mais fixas e objetivas.


Walter Benjamin, em seu ensaio clássico O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936), analisa essa transformação e observa que a oralidade, historicamente vinculada às atividades manuais como fiar e tecer, desempenhava um papel fundamental na transmissão do conhecimento. Contar histórias era um ato artesanal, no qual a repetição e o ritmo reforçavam a memória coletiva e permitiam que a narrativa permanecesse viva e maleável. O narrador tradicional não apenas transmitia informações, mas as envolvia em sua própria experiência, deixando sua marca na história, como um tecelão imprime suas mãos no tecido que produz.


Com a ascensão da informação jornalística - que se consolidou no século XX, e se tornou produção de conteúdo no século XXI - essa tradição começou a se perder. O modelo de história passou a ser rigidamente estruturado, com começo, meio e fim bem definidos, reforçando a linearidade e eliminando a multiplicidade de vozes. A riqueza da narrativa oral, construída com base no entrelaçamento de experiências e na circularidade do tempo, foi substituída por relatos explicativos e desprovidos de envolvimento emocional. As histórias passaram a ser consumidas como produtos fechados, perdendo sua natureza fluida e participativa.


Na literatura, filmes e séries, essa tendência se reflete na dominação do mito do herói. Joseph Campbell, em sua teoria do monomito, propôs que todas as grandes narrativas seguissem um mesmo padrão: a jornada do herói. Essa estrutura, baseada no conflito e na superação individual, consolidou um modelo narrativo que se tornou predominante, reforçando a ideia de que uma boa história precisa de um protagonista que enfrenta desafios, vence obstáculos e retorna transformado.

Ao contrário da linearidade imposta pelo mito do herói, que se apoia na ideia de um começo e um fim bem definidos, o fio sugere uma narrativa mais aberta e interconectada, onde cada história se entrelaça com outras, sem um ponto final absoluto.

No entanto, autoras como Ursula K. Le Guin questionam essa centralidade do herói e sugerem uma alternativa menos baseada na conquista e mais voltada para a continuidade da vida. Em A Bolsa de Ficção, Le Guin propõe que a história da humanidade não deve ser contada apenas a partir das armas e da guerra, mas também dos recipientes, das bolsas, das redes e dos espaços de acolhimento – símbolos do feminino e do cuidado. Em vez de narrativas lineares que avançam em direção a um clímax e uma resolução, ela sugere histórias que se constroem por meio da tecitura de relações, do compartilhamento e da interdependência. A metáfora da bolsa, segundo Le Guin, representa uma forma alternativa de contar histórias, na qual a importância não está no ato de vencer, mas no ato de carregar, proteger e nutrir. 


Essa relação entre a narrativa e os fios está presente na própria língua portuguesa. Expressões como trama, enredo, fio da meada e novela demonstram como o ato de contar histórias está profundamente associado ao ato de tecer. Essas metáforas não são meras coincidências, mas refletem uma tradição na qual o trabalho manual e a oralidade caminham juntos, ambos responsáveis por registrar e transmitir conhecimento.


A escritora Ana Maria Machado explora essa conexão em sua obra, enfatizando como a escrita e o fazer manual compartilham uma história comum. Em O Tao da Teia: Sobre Textos e Têxteis, Machado lembra suas conversas com Roland Barthes (seu orientador durante o doutorado), quando discutiram a presença de metáforas têxteis na linguagem. Barthes observou que a palavra texto deriva de tecido, e que muitas expressões ligadas à narrativa têm origem em práticas têxteis. 


No texto, Ana Maria Machado recupera a tradição das mulheres que bordam e tecem enquanto contam e recontam histórias, destacando como essas práticas, muitas vezes vistas como menores, são na verdade centrais na construção da memória e da identidade cultural. A personagem de um de seus livros, Ponto a Ponto, é uma mulher brasileira humilde, que, ao tecer e bordar, vai construindo sua própria história e sentido de existência. Inspirada em sua avó, uma bordadeira analfabeta, Machado mostra como a arte têxtil é também uma forma de narrativa, um modo de registrar experiências e transmitir conhecimento de geração em geração.


Além disso, a autora reflete sobre sua própria experiência ao reconciliar os "trabalhos de agulha" e a escrita. Desde pequena, ela enfrentou a tensão entre o prazer de ler e o aprendizado das técnicas de bordado, tricô e crochê, sendo muitas vezes criticada por não executar com perfeição o trabalho manual. No entanto, com o tempo, percebeu que esses dois universos não eram opostos, mas complementares. A literatura, assim como tecer, exige paciência, precisão e ritmo.


O fio, portanto, não é apenas um elemento físico, mas um conceito essencial para compreender a cultura e a experiência humana. Ele conecta passado e presente, mito e realidade, materialidade e abstração. Ao contrário da linearidade imposta pelo mito do herói, que se apoia na ideia de um começo e um fim bem definidos, o fio sugere uma narrativa mais aberta e interconectada, onde cada história se entrelaça com outras, sem um ponto final absoluto. A literatura e a oralidade, assim como a tecelagem, constroem-se por meio de relações, de repetições e de variações, permitindo que a memória e a identidade sejam constantemente reelaboradas.


Tecer, escrever e narrar são formas de dar continuidade à vida, de registrar e reinterpretar o mundo, garantindo que as histórias não se percam no tempo. Em vez de um percurso linear e previsível, as histórias podem ser vistas como um tecido em constante expansão, onde cada fio novo fortalece a trama já existente. Essa concepção narrativa não apenas resgata modos ancestrais de contar e compreender o mundo, mas também aponta para um futuro em que as histórias sejam mais inclusivas, múltiplas e sensíveis à complexidade da experiência humana.





Representação das Moiras
Representação das Moiras

Os fios aparecem em diversas mitologias e histórias ao redor do mundo, frequentemente associados ao destino, ao tempo e à criação. Em diferentes culturas, a metáfora do fio é utilizada para representar tanto a continuidade da existência quanto a finitude da vida. Tecelãs divinas, fios invisíveis e tramas complexas ilustram o modo como a humanidade interpreta seu próprio percurso.


Na mitologia grega, as Moiras eram três irmãs responsáveis pelo controle do destino dos mortais e até mesmo dos deuses. Cloto fiava o fio da vida no nascimento, Láquesis determinava seu comprimento e Átropos cortava-o no momento da morte. Essa crença refletia a ideia de que a existência estava pré-determinada e que nem mesmo os deuses podiam interferir em seu desdobramento. Na tradição romana, essas figuras eram conhecidas como Parcas e possuíam funções semelhantes.


Na mitologia nórdica, as Nornas também desempenhavam papel equivalente. Urðr, Verðandi e Skuld habitavam as raízes da árvore do mundo, Yggdrasil, e teciam a trama do destino não apenas dos homens, mas também dos deuses. O destino, nesse contexto, era visto como um elemento inalterável, cujo curso não poderia ser modificado. Diferente das Moiras, as Nornas estavam associadas não apenas à vida e à morte, mas também à manutenção da ordem cósmica.


Em a "Odisseia", épico grego de autoria de Homero, encontramos a história de Penélope, a esposa de Ulisses. Conhecida por sua astúcia ao criar uma estratagema utilizando seu tear. Para adiar a decisão de se casar novamente com um dos muitos pretendentes que invadiam sua casa durante a longa ausência de Ulisses, ela propôs confeccionar um sudário para seu sogro, Laertes, prometendo que o completaria em um determinado período. No entanto, durante a noite, ela desmanchava secretamente o trabalho feito durante o dia, frustrando os planos dos pretendentes e mantendo a sua independência.


Já no mito de Ariadne, o fio aparece como um elemento essencial tanto para a orientação quanto para a transformação. Ariadne, filha do rei Minos de Creta, apaixona-se por Teseu, o herói ateniense enviado para enfrentar o Minotauro no labirinto projetado por Dédalo. Para garantir que ele conseguisse escapar após derrotar a criatura, ela lhe entrega um novelo, permitindo que ele marque seu caminho e retorne em segurança. Em troca, Ariadne exige que Teseu a leve para Atenas como sua esposa. No entanto, após a fuga bem-sucedida, Teseu abandona Ariadne na ilha de Naxos.


Esse abandono marca uma virada crucial no mito. Segundo a interpretação do filósofo Gilles Deleuze no artigo "Mistério de Ariadne segundo Nietzsche" , Teseu representa uma figura reativa, alguém que se define pela negação e pelo cumprimento de deveres e valores rígidos. Sua missão é matar o monstro e escapar do labirinto, mas ele permanece prisioneiro de uma lógica que o obriga a seguir um caminho de retidão, sem questionar seus próprios atos. Ariadne, inicialmente subordinada a essa dinâmica, vê sua trajetória alterada quando encontra Dioniso. Diferente de Teseu, Dioniso simboliza a afirmação da vida em sua multiplicidade e transformação constante.


"Ao aceitar essa nova perspectiva, Ariadne recupera seu fio - sua vida - e deixa de ser uma vítima do abandono, para se torna uma figura ativa, reinventando sua própria trajetória."


Para Deleuze, o verdadeiro dilema de Ariadne não é ser abandonada, mas sim escolher entre permanecer no ressentimento ou abraçar a afirmação dionisíaca. Teseu derrota o Minotauro, mas não compreende o verdadeiro labirinto em que está preso: o de sua própria negação ("o homem sublime vence os monstros e expõe os enigmas, mas ignora o monstro e o enigma que ele próprio é"). Dioniso, ao contrário, oferece a Ariadne a possibilidade de um novo começo, onde a vida não precisa ser reduzida a um roteiro imposto por deveres e obrigações. Ao aceitar essa nova perspectiva, Ariadne recupera seu fio - sua vida - e deixa de ser uma vítima do abandono, para se torna uma figura ativa, reinventando sua própria trajetória.


Outro mito grego/romano que envolve a tecelagem é o de Aracne. Segundo a lenda, Aracne era uma exímia tecelã que desafiou a deusa Atena para uma competição. Sua tapeçaria era melhor que de Atena e retratava as falhas e abusos dos deuses, o que enfureceu a Deusa. Como punição, Aracne foi transformada em aranha e condenada a tecer para sempre.


Para além da Grécia, o fio também aparece em mitologias indígenas norte-americanas e lendas africanas. A Spider Woman (Mulher-Aranha), venerada pelos Hopis e Navajos, é uma criadora do universo. Em algumas versões do mito, ela tece a realidade com seus próprios pensamentos, dando forma a tudo o que existe. Já em uma lenda africana, Anansi, o Homem-Aranha, é um personagem esperto que usa fios e teias para manipular situações a seu favor. Suas histórias cheias de engenhosidade e astúcia podem ser mais poderosos que a força física.


Na Ásia, temos ainda mais exemplos, o "Fio Vermelho do Destino" que conecta pessoas que estão destinadas a se encontrar, na mitologia chinesa. E no Japão, a deusa Amaterasu, ligada ao sol, é associada ao mito da tecelagem celestial, responsável pela harmonia do cosmos.


Apenas uma amostra de antigas histórias que revelam a linguagem do fio como uma metáfora ancestral e profundamente feminina (independente do gênero), e que simboliza a própria essência da vida. Em cada uma delas, o fio reflete a dualidade entre continuidade e ruptura, construção e destruição, expressando a tessitura complexa das forças individuais e cósmicas que regem nossa existência. Essas histórias, que enxergam a vida como uma trama intricada, são também um testemunho da capacidade feminina de dar forma ao caos e ao destino, articulando, por meio de um gesto sutil, a liberdade que convive com o fatalismo.


Mas é claro, que o fio não se restringe aos contos originários, mas segue vivo em nosso imaginário. No entanto, isso é papo para um próximo texto. Até lá!




REFERÊNCIAS:


BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. OBRAS ESCOLHIDAS volume 1


SHAKESPEARE, W. Macbeth. In: Shakespeare – tragédias, vol. I. Trad. de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1978.


TURNER, J. Macbeth. Philadelphia: Open University,1992


Stallybrass, Peter. 'Macbeth and Witchcraft', Macbeth. New Casebooks. Ed. Alan Sinfield . London: Macmillan, 1992


HOMERO. Odisséia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003


NASONE, Publio Ovidio. Metamorfosi. A cura de Piero Bernardini Marzolla, Torino, Enaudi, 1994


DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Porto: Rés.


CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Pensamento, São Paulo, 2007


ATWOOD, Margaret. A odisseia de Penélope, Rocco, 2020.


MACHADO, A. M. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001


Machado, A. M. (2003). O Tao da teia: sobre textos e têxteis . Estudos Avançados, 17(49), 173-196.


Machado, A. M. Ponto a Ponto. Companhia das Letrinhas, 2006

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