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foto do meu caderno de artista, onde guardo a mim e as minhas escutas
foto do meu caderno de artista, onde guardo a mim e as minhas escutas

Desde cedo, me disseram que eu era sensível. Não como elogio, mas como alarme. Como se algo em mim estivesse sempre prestes a falhar. “Você chora demais.” “Você sente demais.” A sensibilidade, nesse contexto, não era qualidade, era ruído. Um excesso que precisava ser corrigido, domesticado, afinado com o mundo.

Passei anos tentando obedecer. Aprendi a conter. A medir. A prever. Fui me moldando até me tornar funcional. Forte, dizem. Mas ser funcional exige amputações: o choro suspenso, o gesto travado, o corpo contido. Ainda assim, algo em mim continuava vibrando, em frequências que eu não conseguia nomear.

Durante muito tempo, tentei traduzir essa vibração em pensamento. Filosofia, arte, pesquisa, ferramentas que me ajudaram a escutar melhor o que se movia em silêncio. Pensar foi, para mim, um modo de ouvir. Não como quem procura certezas, mas como quem encosta o ouvido no chão à procura de algo que ainda não tem forma.

A emoção, nessa circunstância, nunca foi uma explosão. Foi intervalo. Um ruído entre o que eu sentia e o que conseguia dizer. Nem sempre era bonito, nem sempre era produtivo, às vezes era só falha, mas aprendi a não virar o rosto diante dela.

Por isso, quando esses dias reli Que emoção! Que emoção?, um livro pequenininho de Georges Didi-Huberman, algo reverberou. O argumento do autor parte de uma imagem: o rosto de uma criança chorando. Mas não se trata de sentimentalismo. O que está em jogo ali é o acontecimento da emoção como desorganização e como linguagem. O choro como gesto que expõe, que quebra o andamento, que abre espaço.

Mas não romantizo isso. A emoção pode ser brutal. Pode ser banal. Pode ser apropriada, convertida, domesticada de novo. O que me interessa não é a emoção como autenticidade, mas como indício. Como corpo que escuta, que hesita, que falha. A emoção, para mim, é menos um lugar de verdade do que de trabalho. Um trabalho de escuta, que exige tempo, silêncio, paciência para não converter tudo em significado imediato.

No meu processo de criação, essa escuta é o que antecede qualquer gesto. Não crio a partir da emoção como quem verte algo puro. Crio a partir da hesitação que ela impõe. Do descompasso. Do intervalo entre a experiência e sua forma. E talvez aí esteja o seu valor: a emoção não como matéria bruta, mas como tensão, um campo em que o corpo e a linguagem ainda estão se fazendo.

Às vezes, penso que essa sensibilidade que tanto tentei apagar é, na verdade, uma forma de atenção. Uma forma de estar porosa ao mundo, mesmo que isso doa. Mesmo que isso me atrase. Mesmo que isso me torne, aos olhos de muitos, fraca demais, lenta demais, instável demais.

Mas talvez criar, verdadeiramente criar, exija isso: escutar antes de afirmar. Hesitar antes de nomear. Permitir que algo atravesse, mesmo que não se saiba o que é. Mesmo que não se transforme imediatamente em discurso, em obra, em produto. Sentir, nesse sentido, não é fim. É abertura.

E talvez seja essa abertura que ainda me interessa preservar. Mesmo quando ela dói. Mesmo quando falha. Porque, no fim, não é sobre chorar ou não chorar. É sobre não endurecer a ponto de deixar de escutar.

 
 
 
  • 14 de fev.
  • 3 min de leitura


Emanuele Coccia e Alessandro Michele, autores de La Vita delle Forme. Filosofia del Reincanto
Emanuele Coccia e Alessandro Michele, autores de La Vita delle Forme. Filosofia del Reincanto

A função da roupa vai além da funcionalidade do vestuário, ela envolve a forma como nos relacionamos com o mundo e como nos expressamos através da materialidade. As roupas não são apenas artefatos utilitários, mas manifestações de nossa identidade, história e experiência sensorial. Em A Vida Sensível, Emanuele Coccia explora a ideia de que a existência não se limita ao interior do ser, mas se estende aos objetos e meios que nos cercam, tornando o sensível um componente essencial da vida. Já em La Vita delle Forme. Filosofia del Reincanto (sem edição no Brasil), Coccia e Alessandro Michele aprofundam a noção de que a moda não é apenas um reflexo cultural ou social, mas uma linguagem própria, capaz de transformar e ressignificar a forma como habitamos o tempo e o espaço.


"A moda é um meio através do qual a vida se liberta e se reinventa, enquanto a filosofia é o instrumento que permite que o pensamento se manifeste em diversas formas. Assim, uma peça de roupa pode ser tanto um objeto físico quanto um suporte para a expressão de ideias e conceitos."

O conceito de "vida sensível", conforme apresentado por Emanuele Coccia, sugere que os viventes não existem apenas dentro de si, mas também nos meios que os circundam. Dessa forma, roupas, calçados e acessórios são parte fundamental da construção de nossa identidade e expressão. A relação entre moda e filosofia destaca-se nesse contexto. A moda é um meio através do qual a vida se liberta e se reinventa, enquanto a filosofia é o instrumento que permite que o pensamento se manifeste em diversas formas. Assim, uma peça de roupa pode ser tanto um objeto físico quanto um suporte para a expressão de ideias e conceitos. Esse paralelismo entre moda e filosofia desafia preconceitos históricos que separaram as artes mecânicas das artes liberais, uma distinção que marginalizou trabalhos manuais como a costura e a pintura em relação às formas "mais nobres" de expressão intelectual.


A evolução da moda também pode ser compreendida a partir de uma perspectiva histórica. Durante séculos, as roupas refletiram a posição social, o gênero e a profissão dos indivíduos. No entanto, com as transformações sociais e culturais, a vestimenta passou a ser um meio de subversão e experimentação, permitindo que os indivíduos transcendam categorias fixas de identidade. A moda contemporânea possibilita não apenas a autoexpressão, mas também a ressignificação do tempo e da história. O conceito de contemporaneidade abordado por Giorgio Agamben reforça essa ideia, ao destacar que ser verdadeiramente contemporâneo significa não coincidir perfeitamente com o presente, mas sim abrir espaço para novas possibilidades temporais.


O poder de transformação da roupa


Segundo Coccia e Michele, a repetição na moda é um elemento essencial. Ao longo do tempo, as formas e estilos se repetem, mas essa repetição não é meramente cíclica; ela permite a reinvenção e a ressignificação. Criar roupas ou definir um estilo pessoal torna-se, assim, um exercício semelhante à prática de místicos que repetem gestos e palavras até esvaziá-los de significado original, abrindo espaço para novas interpretações.


"Se os animais passam por metamorfoses naturais, os seres humanos fazem isso através das roupas, assumindo novas identidades ao vestir determinadas peças. "

A "troca de pele" é outro aspecto fundamental. A moda possibilita transformações que seriam impossíveis apenas com a biologia. Se os animais passam por metamorfoses naturais, os seres humanos fazem isso através das roupas, assumindo novas identidades ao vestir determinadas peças. Essa dimensão animista da moda permite uma troca simbólica entre o ser e o mundo, criando novas formas de interação e compreensão.


Por fim, a moda pode ser entendida como uma espécie de "medicina sensível", um meio de cura e transformação do ser. Assim como a alquimia buscava a transfiguração dos elementos, a moda oferece a possibilidade de renovação constante da identidade, permitindo que o indivíduo experimente diferentes formas de existir no mundo. Mais do que um instrumento de estética ou consumo, a roupa é apresentada como um espaço de reflexão, liberdade e potencial criativo, reforçando a ideia de que o corpo humano não é apenas um organismo, mas um campo de alianças e significados que se expandem através das vestimentas.


 
 
 

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A relação entre mitologias, ancestralidade e as metáforas com o fio percorre diversos campos do conhecimento e das narrativas humanas. Essa conexão está presente desde as mitologias gregas, africanas e indígenas (como vimos no texto passado) até as construções narrativas da literatura ocidental. No entanto, a maneira como essas histórias são contadas foi se transformando ao longo do tempo, passando de narrativas cheias de texturas e tecidas coletivamente para estruturas cada vez mais fixas e objetivas.


Walter Benjamin, em seu ensaio clássico O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936), analisa essa transformação e observa que a oralidade, historicamente vinculada às atividades manuais como fiar e tecer, desempenhava um papel fundamental na transmissão do conhecimento. Contar histórias era um ato artesanal, no qual a repetição e o ritmo reforçavam a memória coletiva e permitiam que a narrativa permanecesse viva e maleável. O narrador tradicional não apenas transmitia informações, mas as envolvia em sua própria experiência, deixando sua marca na história, como um tecelão imprime suas mãos no tecido que produz.


Com a ascensão da informação jornalística - que se consolidou no século XX, e se tornou produção de conteúdo no século XXI - essa tradição começou a se perder. O modelo de história passou a ser rigidamente estruturado, com começo, meio e fim bem definidos, reforçando a linearidade e eliminando a multiplicidade de vozes. A riqueza da narrativa oral, construída com base no entrelaçamento de experiências e na circularidade do tempo, foi substituída por relatos explicativos e desprovidos de envolvimento emocional. As histórias passaram a ser consumidas como produtos fechados, perdendo sua natureza fluida e participativa.


Na literatura, filmes e séries, essa tendência se reflete na dominação do mito do herói. Joseph Campbell, em sua teoria do monomito, propôs que todas as grandes narrativas seguissem um mesmo padrão: a jornada do herói. Essa estrutura, baseada no conflito e na superação individual, consolidou um modelo narrativo que se tornou predominante, reforçando a ideia de que uma boa história precisa de um protagonista que enfrenta desafios, vence obstáculos e retorna transformado.

Ao contrário da linearidade imposta pelo mito do herói, que se apoia na ideia de um começo e um fim bem definidos, o fio sugere uma narrativa mais aberta e interconectada, onde cada história se entrelaça com outras, sem um ponto final absoluto.

No entanto, autoras como Ursula K. Le Guin questionam essa centralidade do herói e sugerem uma alternativa menos baseada na conquista e mais voltada para a continuidade da vida. Em A Bolsa de Ficção, Le Guin propõe que a história da humanidade não deve ser contada apenas a partir das armas e da guerra, mas também dos recipientes, das bolsas, das redes e dos espaços de acolhimento – símbolos do feminino e do cuidado. Em vez de narrativas lineares que avançam em direção a um clímax e uma resolução, ela sugere histórias que se constroem por meio da tecitura de relações, do compartilhamento e da interdependência. A metáfora da bolsa, segundo Le Guin, representa uma forma alternativa de contar histórias, na qual a importância não está no ato de vencer, mas no ato de carregar, proteger e nutrir. 


Essa relação entre a narrativa e os fios está presente na própria língua portuguesa. Expressões como trama, enredo, fio da meada e novela demonstram como o ato de contar histórias está profundamente associado ao ato de tecer. Essas metáforas não são meras coincidências, mas refletem uma tradição na qual o trabalho manual e a oralidade caminham juntos, ambos responsáveis por registrar e transmitir conhecimento.


A escritora Ana Maria Machado explora essa conexão em sua obra, enfatizando como a escrita e o fazer manual compartilham uma história comum. Em O Tao da Teia: Sobre Textos e Têxteis, Machado lembra suas conversas com Roland Barthes (seu orientador durante o doutorado), quando discutiram a presença de metáforas têxteis na linguagem. Barthes observou que a palavra texto deriva de tecido, e que muitas expressões ligadas à narrativa têm origem em práticas têxteis. 


No texto, Ana Maria Machado recupera a tradição das mulheres que bordam e tecem enquanto contam e recontam histórias, destacando como essas práticas, muitas vezes vistas como menores, são na verdade centrais na construção da memória e da identidade cultural. A personagem de um de seus livros, Ponto a Ponto, é uma mulher brasileira humilde, que, ao tecer e bordar, vai construindo sua própria história e sentido de existência. Inspirada em sua avó, uma bordadeira analfabeta, Machado mostra como a arte têxtil é também uma forma de narrativa, um modo de registrar experiências e transmitir conhecimento de geração em geração.


Além disso, a autora reflete sobre sua própria experiência ao reconciliar os "trabalhos de agulha" e a escrita. Desde pequena, ela enfrentou a tensão entre o prazer de ler e o aprendizado das técnicas de bordado, tricô e crochê, sendo muitas vezes criticada por não executar com perfeição o trabalho manual. No entanto, com o tempo, percebeu que esses dois universos não eram opostos, mas complementares. A literatura, assim como tecer, exige paciência, precisão e ritmo.


O fio, portanto, não é apenas um elemento físico, mas um conceito essencial para compreender a cultura e a experiência humana. Ele conecta passado e presente, mito e realidade, materialidade e abstração. Ao contrário da linearidade imposta pelo mito do herói, que se apoia na ideia de um começo e um fim bem definidos, o fio sugere uma narrativa mais aberta e interconectada, onde cada história se entrelaça com outras, sem um ponto final absoluto. A literatura e a oralidade, assim como a tecelagem, constroem-se por meio de relações, de repetições e de variações, permitindo que a memória e a identidade sejam constantemente reelaboradas.


Tecer, escrever e narrar são formas de dar continuidade à vida, de registrar e reinterpretar o mundo, garantindo que as histórias não se percam no tempo. Em vez de um percurso linear e previsível, as histórias podem ser vistas como um tecido em constante expansão, onde cada fio novo fortalece a trama já existente. Essa concepção narrativa não apenas resgata modos ancestrais de contar e compreender o mundo, mas também aponta para um futuro em que as histórias sejam mais inclusivas, múltiplas e sensíveis à complexidade da experiência humana.


 
 
 
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