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O Fio da vida: narrativas tecidas - parte II



A relação entre mitologias, ancestralidade e as metáforas com o fio percorre diversos campos do conhecimento e das narrativas humanas. Essa conexão está presente desde as mitologias gregas, africanas e indígenas (como vimos no texto passado) até as construções narrativas da literatura ocidental. No entanto, a maneira como essas histórias são contadas foi se transformando ao longo do tempo, passando de narrativas cheias de texturas e tecidas coletivamente para estruturas cada vez mais fixas e objetivas.


Walter Benjamin, em seu ensaio clássico O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936), analisa essa transformação e observa que a oralidade, historicamente vinculada às atividades manuais como fiar e tecer, desempenhava um papel fundamental na transmissão do conhecimento. Contar histórias era um ato artesanal, no qual a repetição e o ritmo reforçavam a memória coletiva e permitiam que a narrativa permanecesse viva e maleável. O narrador tradicional não apenas transmitia informações, mas as envolvia em sua própria experiência, deixando sua marca na história, como um tecelão imprime suas mãos no tecido que produz.


Com a ascensão da informação jornalística - que se consolidou no século XX, e se tornou produção de conteúdo no século XXI - essa tradição começou a se perder. O modelo de história passou a ser rigidamente estruturado, com começo, meio e fim bem definidos, reforçando a linearidade e eliminando a multiplicidade de vozes. A riqueza da narrativa oral, construída com base no entrelaçamento de experiências e na circularidade do tempo, foi substituída por relatos explicativos e desprovidos de envolvimento emocional. As histórias passaram a ser consumidas como produtos fechados, perdendo sua natureza fluida e participativa.


Na literatura, filmes e séries, essa tendência se reflete na dominação do mito do herói. Joseph Campbell, em sua teoria do monomito, propôs que todas as grandes narrativas seguissem um mesmo padrão: a jornada do herói. Essa estrutura, baseada no conflito e na superação individual, consolidou um modelo narrativo que se tornou predominante, reforçando a ideia de que uma boa história precisa de um protagonista que enfrenta desafios, vence obstáculos e retorna transformado.

Ao contrário da linearidade imposta pelo mito do herói, que se apoia na ideia de um começo e um fim bem definidos, o fio sugere uma narrativa mais aberta e interconectada, onde cada história se entrelaça com outras, sem um ponto final absoluto.

No entanto, autoras como Ursula K. Le Guin questionam essa centralidade do herói e sugerem uma alternativa menos baseada na conquista e mais voltada para a continuidade da vida. Em A Bolsa de Ficção, Le Guin propõe que a história da humanidade não deve ser contada apenas a partir das armas e da guerra, mas também dos recipientes, das bolsas, das redes e dos espaços de acolhimento – símbolos do feminino e do cuidado. Em vez de narrativas lineares que avançam em direção a um clímax e uma resolução, ela sugere histórias que se constroem por meio da tecitura de relações, do compartilhamento e da interdependência. A metáfora da bolsa, segundo Le Guin, representa uma forma alternativa de contar histórias, na qual a importância não está no ato de vencer, mas no ato de carregar, proteger e nutrir. 


Essa relação entre a narrativa e os fios está presente na própria língua portuguesa. Expressões como trama, enredo, fio da meada e novela demonstram como o ato de contar histórias está profundamente associado ao ato de tecer. Essas metáforas não são meras coincidências, mas refletem uma tradição na qual o trabalho manual e a oralidade caminham juntos, ambos responsáveis por registrar e transmitir conhecimento.


A escritora Ana Maria Machado explora essa conexão em sua obra, enfatizando como a escrita e o fazer manual compartilham uma história comum. Em O Tao da Teia: Sobre Textos e Têxteis, Machado lembra suas conversas com Roland Barthes (seu orientador durante o doutorado), quando discutiram a presença de metáforas têxteis na linguagem. Barthes observou que a palavra texto deriva de tecido, e que muitas expressões ligadas à narrativa têm origem em práticas têxteis. 


No texto, Ana Maria Machado recupera a tradição das mulheres que bordam e tecem enquanto contam e recontam histórias, destacando como essas práticas, muitas vezes vistas como menores, são na verdade centrais na construção da memória e da identidade cultural. A personagem de um de seus livros, Ponto a Ponto, é uma mulher brasileira humilde, que, ao tecer e bordar, vai construindo sua própria história e sentido de existência. Inspirada em sua avó, uma bordadeira analfabeta, Machado mostra como a arte têxtil é também uma forma de narrativa, um modo de registrar experiências e transmitir conhecimento de geração em geração.


Além disso, a autora reflete sobre sua própria experiência ao reconciliar os "trabalhos de agulha" e a escrita. Desde pequena, ela enfrentou a tensão entre o prazer de ler e o aprendizado das técnicas de bordado, tricô e crochê, sendo muitas vezes criticada por não executar com perfeição o trabalho manual. No entanto, com o tempo, percebeu que esses dois universos não eram opostos, mas complementares. A literatura, assim como tecer, exige paciência, precisão e ritmo.


O fio, portanto, não é apenas um elemento físico, mas um conceito essencial para compreender a cultura e a experiência humana. Ele conecta passado e presente, mito e realidade, materialidade e abstração. Ao contrário da linearidade imposta pelo mito do herói, que se apoia na ideia de um começo e um fim bem definidos, o fio sugere uma narrativa mais aberta e interconectada, onde cada história se entrelaça com outras, sem um ponto final absoluto. A literatura e a oralidade, assim como a tecelagem, constroem-se por meio de relações, de repetições e de variações, permitindo que a memória e a identidade sejam constantemente reelaboradas.


Tecer, escrever e narrar são formas de dar continuidade à vida, de registrar e reinterpretar o mundo, garantindo que as histórias não se percam no tempo. Em vez de um percurso linear e previsível, as histórias podem ser vistas como um tecido em constante expansão, onde cada fio novo fortalece a trama já existente. Essa concepção narrativa não apenas resgata modos ancestrais de contar e compreender o mundo, mas também aponta para um futuro em que as histórias sejam mais inclusivas, múltiplas e sensíveis à complexidade da experiência humana.


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