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Tecelãs do Coletivo

Presente em muitos mitos e tradições, as simbologias das mulheres tecelãs ensinam sobre a capacidade e responsabilidade de criar o nosso destino individual e coletivo

Ilustração: Etiene Flor - @ilustraquemegusta


A necessidade de isolamento social causada pela pandemia da Covid-19, fez muita gente se colocar de frente para o espelho e questionar ações individuais e seus impactos no coletivo. De que maneira o que eu faço afeta o outro? Será que minhas atitudes individuais podem transformar o espaço comum?


No começo da pandemia, eu comecei a estudar mitos e contos que têm como figuras centrais mulheres tecelãs e, para além das referências sobre o feminino, a partir destas histórias tive alguns insights sobre nosso poder de criar a realidade que queremos e a responsabilidade que temos na construção do coletivo. Se pensarmos em nossa sociedade como uma grande teia tecida a muitas mãos, ao cortar um fio ou criar um novo ponto de conexão, sempre haverá impacto no todo. Por menor que seja, alguém sentirá as consequências da minha ação. Entrelaçamos nossas vidas com as vidas de outras pessoas o tempo todo, mesmo que de forma inconsciente. O que proponho é trazer para o nível da consciência a reflexão de que tudo o que tecemos em nossas narrativas pessoais reverbera, de algum modo, nas narrativas coletivas.

A tecelagem é uma das atividades mais antigas do mundo. Foi fundamental para o desenvolvimento do homem, garantindo sua proteção ao sol e ao frio e a construção de ferramentas para armazenagem e pesca – como cestos tecidos de palha e folhas. Se buscarmos na história, veremos que o fio e o tear são símbolos que aparecem em diversas tradições e mitos. Do tear de Penélope, na Mitologia Grega, às deusas fiandeiras, a tessitura era tarefa feminina e, além de sua função prática, representava a criação da vida, a narração de histórias e a salvaguarda de memórias.

Não à toa, muitos desses contos colocam as tecelãs como mulheres mágicas, capazes de controlar o futuro da humanidade, a criação e a ordem do universo. As Moiras, por exemplo, eram três irmãs que, através do ato de fiar, tecer e cortar o fio da vida, eram responsáveis pelo destino de deuses e seres humanos. O nascimento, o desenrolar da vida e a morte estavam em suas mãos.


Outro exemplo da nossa capacidade de criação é a deusa da criatividade Ix Chel, adorada pelos Maias na península de Iucatã, e tecelã da teia da vida. “Eu teço fios de energia na teia da criação/ Onde nada existia antes/ Do vazio para o mundo/ Eu fio criando a vida a partir da minha mente, a partir do meu corpo, a partir da minha consciência do que precisa existir/ Agora existe algo novo e toda vida é alimentada”, diz o verso escrito por Amy Sophia Marashinsky, autora do Oráculo da Deusa. Segundo a tradição, foi ela quem ensinou as mulheres a fiar, tingir, tecer e bordar.

E se às tecelãs era dado o poder de criar vida e dar ordem ao caos, o tecer também era uma forma das mulheres narrarem suas próprias histórias. Durante a Guerra de Troia, Penélope encontrou no tear uma forma de adiar a escolha de um novo marido após a partida de Ulisses. Para ter controle do próprio destino, Penélope diz que só se casará novamente quando terminar a tapeçaria que está fazendo. Assim, ela tece de dia e desmancha à noite, garantindo autonomia sobre sua vida e história.


A escritora Ana Maria Machado, em seu livro “De olho nas penas”, escreveu sobre Ananse, a aranha contadora de histórias da tradição dos povos africanos. “Há muito tempo atrás, quando os deuses ainda eram os únicos donos de tudo, até das histórias, eu resolvi ir buscar todas elas para contar ao povo. Foi muito difícil. Levei dias e noites, sem parar, tecendo fios para fazer uma escada até o céu. Depois, quando cheguei lá, tive que passar por uma porção de provas de esperteza, porque eles não queriam me dar as histórias, que viviam guardadas numa grande cabaça. [...] Consegui vencer e ganhei a cabaça com todas as histórias do mundo. Na volta, enquanto eu descia a escada, a cabaça caiu e quebrou, e muitas histórias se espalharam por aí, mas quando eu conto, vou desenrolando o fio da história de dentro de mim, e por isso sai melhor do que quando os outros contam. Por isso, todo mundo pode contar, mas toda aldeia tem alguém como eu, algum Ananse que também conta melhor essas histórias. E quem ouve também sai contando, e fazendo novas, e trazendo de volta um pouco diferente, sempre com fios novos, e eu vou ouvindo e tecendo, até ficar uma teia bem completa e bem forte. Só com uma teia assim, toda bonita e resistente, é que dá para aguentar todo o peso de um povo, de uma aldeia, de uma nação, de uma terra”.

É preciso manter viva a memória de nossa história enquanto sociedade para que possamos mudar e criar uma realidade melhor e mais sólida. Como disse a historiadora Emília Viotti da Costa: “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”. As experiências vividas são o fio que permitem tecer novas e diferentes existências e relações.

Ainda sobre os diversos símbolos da tecelagem nos mitos tradicionais, gosto particularmente da história de Ariadne. Filha do Rei Minos, Ariadne se apaixona por Teseu, um dos voluntários para derrotar o Minotauro. Para tentar salvá-lo dos perigos do labirinto onde o monstro metade homem metade touro vivia, ela entregou a Teseu um novelo de fio de ouro e o instruiu a desenrolá-lo em sua trajetória pelo labirinto, pois assim conseguiria encontrar o caminho de volta. Do ponto de vista psicológico, dentre muitas interpretações e análises, a empreitada de Teseu significa um mergulho ao interior, onde moram os nossos maiores medos. É preciso enfrentá-los se queremos criar uma nova história e o fio de Ariadne é a lembrança do caminho percorrido para chegar

até ali.


No texto “As Deusas Tecelãs”, a autora e especialista em Sagrado Feminino, Mirella Faur, explica, através dos símbolos do tecer, que somos seres únicos, com o poder de criar individual e coletivamente. “Tecer significa ativar e misturar nossas experiências de vida para produzir um padrão individual, único e inimitável, que diferencia cada indivíduo entre todos os seres no cosmos. Quando permitimos que uma nova experiência se integre no nosso viver, quando não tememos as transformações decorrentes, estamos tornando nosso padrão pessoal mais complexo e, com isto, enriquecendo o padrão coletivo. Tornamo-nos cocriadoras da Grande Teia, participando na criação do nosso destino individual, grupal e coletivo”, escreveu.

Quando resgatamos as histórias das tecelãs, percebemos o poder e responsabilidade que temos em mãos. A figura da tecelã representa todos nós, seres individuais com grandes poderes de criação e construção. O fio, que não tem forma alguma, através do tecer a vida criam experiências e conexões, construindo a nossa própria história, mas também a de nossa comunidade, em uma grande rede/teia que nos une. E é importante lembrar que sempre é possível tecer novos padrões, desmanchar e criar uma nova realidade.

O que vamos fazer com o fio é nossa escolha. O que você tece e constrói para você tem impacto no todo e é preciso assumir nossa participação na esfera pública – onde não estamos sozinhos. Que a gente encontre inspiração em Ariadne que, com seu fio, nos lembra o caminho para a saída desse labirinto e caos que parecemos estar. Tecendo nossos próprios destinos sem esquecer que, apesar de sermos seres individuais, atuamos e funcionamos em rede – uma grande teia de fio quase invisível, mas que existe e resiste.

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