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O poder do invisível



Na Índia, a linha como metáfora era utilizada nos textos filosóficos e sagrados para falar sobre Rta, termo em sânscrito que significa “verdade” ou “ordem” cósmica. Para os indianos, a poética do tecido traz em si a possibilidade transformadora e a força latente do que é mutável, um padrão inerente à própria vida.


A arte tradicional indiana possui potencial terapêutico, reflexivo e de cura. O realizar com as mãos, em sua essência, é mais do que uma forma de fazer coisas: implica diretamente na construção de si e do entorno. O tecer, a roda de fiar, a linha e a agulha são convites para processos de autoconsciência e resiliência.


No início de 2019, conheci o trabalho de Priya Ravish Mehra na Bienal Internacional de Arte Kochi-Muziris, em Kochin, na Índia. Encantei-me com a estética dos seus experimentos em papel, linha e tecido. Os pontos de cerzido, ao invés de esconder, exaltavam as marcas e desgastes na matéria. Foi também o meu primeiro contato com a palavra Rafoogari, uma técnica extremamente minuciosa de cerzido invisível.


Durante 15 anos a artista trabalhou com a comunidade Rafoogar de Najibadad, estado de Uttar Pradesh. A cidade, fundada no século 18, era o eixo comercial dos sofisticados tecidos produzidos na Kashemira, extremo norte do país. Os chamados Kani Shawls eram feitos em técnicas de tapeçaria usando um raro tipo de lã, com uma complexa combinação de cores e desenhos. Por ser um processo lento e artesanal, a produção utilizando meios tradicionais tornou-se inviável, diminuindo gradativamente a partir do final do século 19.


Não se sabe se os profissionais especializados na manutenção dos tecidos surgiram durante ou após esse período, quando as peças precisaram ser restauradas. O certo é que num contexto de mudança econômica e social, tornaram-se fundamentais para mantê-las vivas e em circulação.

Não é por acaso que os Rafoogars também são conhecidos como healers, ou seja, curadores.


Ainda hoje, após o período das monções, famílias indianas repetem anualmente o ritual de retirar seus xales dos armários, examiná-los cuidadosamente e aguardar o Rafoogar para os reparos necessários. Alguns desses tecidos tem mais de 300 anos e são cuidados por uma mesma linhagem de artesãos. A excelência de um profissional é medida conforme a sua capacidade de ocultar a ruptura no tecido, através da invisibilidade dos pontos que camuflam o dano. A grande ironia é que, ao buscar a perfeição no invisível, eles próprios tornaram-se ocultos.


Em um de seus textos, Priya afirma que ao iniciar sua pesquisa, não encontrou sequer

uma menção aos Rafoogars nos registros da história das narrativas têxteis. Eles passaram

a refletir a essência e natureza de sua técnica.


Assim como em outros ofícios, o saber é passado de geração para geração, mas a falta de reconhecimento e a baixa remuneração tem mudado o tecido social da comunidade Rafoogar. Sobretudo os jovens já não se interessam mais em manter a tradição.


Priya faleceu no ano de 2018, tendo enfrentado ao longo de 12 anos um câncer. Durante sua pesquisa, o ato de cerzir tornou-se uma metáfora ressonante à própria necessidade de cura: “invocar ‘reparo’ como uma forma vital de autoconsciência; e afirmar simbolicamente

o lugar, o significado e o ato de consertar o tecido de qualquer vida, bem como a vida de qualquer tecido”. Conforme sua experiência “qualquer aparente interrupção no ritmo do tecido pessoal é simplesmente outra afirmação do continuum universal e sem costuras, do Rta. Não somos nem mais nem menos que novelos transitórios e mutáveis na trama cósmica, infinita, imaculada, imperecível”.

A história do cerzido é tão antiga quanto o próprio tecido e talvez, à primeira vista, pareça um assunto ordinário demais para ser elaborado. Mas um fio possui uma resiliência inestimável. É através dele que a vida se prolonga.







Acima um Rafoogar

cerzindo e, ao lado, um

exemplo do resultado

de seu trabalho.

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