Biodiversidade brasileira tem muita fibra vegetal alternativa passível de ser estudada e desenvolvida para fins têxteis
Pensar em materiais alternativos para a indústria têxtil pode ser uma forma de buscar diminuir os impactos dessa cadeia que abusa do poliéster (que é um plástico, vem do petróleo) e do algodão convencional (cheio de veneno). De acordo com o relatório Preferred Fiber & Materials Market Report 2019 da Textile Exchange, o poliéster e o algodão foram responsáveis, respectivamente, por 51,5% e 24,4% da produção mundial de fibras em 2018.
O algodão orgânico aparece como material queridinho das “marcas de moda sustentável”. É tão queridinho que o capitalismo engoliu, cooptou. E com isso, já temos plantação de algodão orgânico seguindo a lógica da monocultura e marcas gigantes de fast fashion fazendo coleções “verdes”, utilizando essa matéria prima como apelo.
Mas a verdade é que na biodiversidade brasileira tem muita fibra vegetal alternativa passível de ser estudada e desenvolvida para fins têxteis. Tucum, tururi, buriti, fibra da bananeira e por aí vai. Fibras que saem de plantas, mas que não são escaláveis. Isso deve realmente ser uma questão?
A lógica capitalista de acumulação infinita, produção (e consumo!) desenfreada e de exploração sem limites dos recursos da terra foi o que nos trouxe até aqui. Por aqui, entende-se um mundo em crise ambiental, ecológica, política, social... Até aí, nenhuma novidade, o capitalismo é um sistema de crises. Produzir dentro desse sistema econômico reforça a falsa dicotomia de que a humanidade e a natureza são coisas distintas, o que leva a desconexão, desequilíbrio e o tão almejado DESenvolvimento (ou seja, o não envolvimento – interessante análise morfológica trazida pela líder indígena Sônia Guajajara no vídeo “Feminismo, comuns e ecossocialismo” para o canal da TV Boitempo).
Se estamos procurando novos materiais porque acreditamos que a forma como a moda está sendo feita hoje é prejudicial ao planeta como um todo, não podemos pensar em novos materiais que se enquadrem na velha lógica de produção e mercado. Pensar em novos materiais e não mexer na estrutura do sistema é capitalismo verde ou consciente, ecologia liberal, ambientalismo elitista. Não atinge a base, não cria condições materiais para a mudança, e caminha, inevitavelmente, para o colapso.
Recorrer a conhecimentos tradicionais de povos originários pode ser uma bela forma de contornar o sistema vigente. Partindo da consciência de integração com a natureza, é possível sim utilizar os recursos naturais, conhecendo e respeitando os limites da terra. Valorizar conhecimentos tradicionais é uma maneira de conservação de espécies (inclusive da nossa) e existe um termo para isso, etnoconservação da natureza. Os estudos de etnoconservação sustentam que as populações tradicionais e seus saberes ancestrais contribuem para a conservação dos recursos naturais que manejam (DIEGUES, 2000).
Por exemplo, uma específica comunidade de ribeirinhos do estado do Amazonas tem o conhecimento tradicional de extração e manipulação de uma fibra vegetal chamada tucum. Essa fibra sai do interior da folha de uma palmeira. No processo de extração, apenas uma folha pode ser extraída, por palmeira, a cada seis meses (ABREU; NUNES, 2012). Eles sabem que se extraírem mais do que isso, o indivíduo morre. Portanto, respeitar esse limite é o que guia a produção.
A lógica dos produtos frutos de novos materiais deve ser essa, a natureza guiando e limitando a quantidade e não o contrário. Trazer esse tipo de material (e mentalidade) para a moda não é simplesmente ter uma nova “matéria-prima sustentável”. É mexer em estruturas, é trazer para a cena saberes ancestrais, comunidades tradicionais e a necessidade de demarcação de seus territórios. É falar sobre agroflorestas, incentivar agricultura familiar e lutar por redistribuição de terra. É jogar luz na potência da nossa sociobiodiversidade e construir novos modelos de negócio, baseados em cooperação dos atores interessados.
Articulações entre academia (pesquisa), comunidades tradicionais (e seus conhecimentos ancestrais), campo (agricultura familiar), indústrias têxteis, marcas de moda e pessoas que têm a intenção (e ação) de mudar a lógica do sistema é de onde pode surgir a síntese. Roubando o conceito da biologia, é esse o tipo de ecossistema que deve ser formado e fomentado. Um colaborando com o outro para, além de simplesmente produzirem novos materiais visando um nicho “verde” de mercado, tornarem vivo um novo sistema de moda. Ou melhor, uma moda para um novo sistema.
Referências:
ABREU, R.; NUNES, N.L. Tecendo a tradição e valorizando o conhecimento tradicional na Amazônia: o caso da “linha do Tucum”. Horizontes Antropológicos, v. 18, n. 38, p. 15-43, 2012.
DIEGUES, A. C. Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. 2. Ed. São Paulo: Hucitec e NUPAUB, p. 273-290, 2000.
TEXTILE EXCHANGE. Preferred Fiber & Materials Market Report 2019. [s.l.: s.n.], 2019.
Feminismo, comuns e ecossocialismo | Silvia Federici e Sonia Guajajara. [Boitempo: s.l.] 17 de mar. 2021. 1 vídeo (1:58:50). Publicado pelo canal TV Boitempo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zYa_RP5BuZc&t=3043s. Acesso em: 17 de mar. 2021
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