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Cosmovisão têxtil

A jiboia e a aranha são elementos fundamentais na concepção dos tecidos e grafismos Huni Kuin

Maxi Huni Kuin (Rufina, em português) da Aldeia Boa Vista com um cesto de trançado de

palha em produção, técnica tradicionalmente desenvolvida pelas mulheres.

Foto: Bruna Brandão © Copyright Instituto Yube Inu



"Haux, haux. Meu nome é Bunke Inani Huni Kuin, moro na Aldeia Boa Vista, Rio Jordão, Acre. Sou representante dos trabalhos das mulheres indígenas”. Bunke, ou Maria Socorro Kaxinawá, em português, é uma entre os pouco mais de 12 mil habitantes do povo indígena mais numeroso do Acre, os Huni Kuin. Desde o leste peruano até a fronteira com o Brasil, as aldeias se espalham pelos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus.


O nome Huni Kuin, no idioma hãtxa kuin, significa “homens verdadeiros” e uma das suas principais expressões culturais, os grafismos chamados de Kene, são traduzidos como “desenhos verdadeiros”. Os Kene expressam uma parte fundamental da identidade desse povo e são aplicados tanto em pinturas corporais quanto em tecelagens, cestarias e cerâmicas. As artes gráficas desta etnia estão intimamente ligadas à experiência produzida pelo Nixi Pae (ayahuasca), bebida psicoativa feita a partir da decocção de duas plantas nativas da floresta tropical, o cipó Banisteriopsis caapi (caapi, douradinho ou mariri) e folhas da rubiácea Psychotria viridis (chacrona).


A manualidade Huni Kuin é coletiva e feminina. São elas as guardiãs e mestras dos cantos rituais associados à tecelagem e aos grafismos. Aos homens, conta Bunke, cabe o roçado e o plantio do algodão, que depois será fiado, tecido e tingido com pigmentos naturais pelas mulheres. Um dos pigmentos mais utilizados é retirado da casca da árvore Ixti nãti (Águano, em português) que resulta na cor preta, uma das mais difíceis de obter por conta do longo processo de tingimento e mordentagem [processo de preparar um tecido para receber corantes]. São plantadas cinco variedades distintas de shapu (algodão) com colorações e volumes de fibras diferentes.


Entre os trabalhos manuais desenvolvidos pelas mulheres, se destacam a tecelagem, que pode ser dividida entre as que são produzidas com linhas industriais e as que são feitas com linhas artesanais. As de linhas artesanais são mais raras, pois exigem o conhecimento apropriado e um longo processo, que passa pelo cultivo do algodão de uma semente de manejo ancestral, a fiação das linhas manualmente, o tingimento com diversos materiais vegetais e minerais da floresta e finalmente a tecelagem manual. Com os tecidos são produzidas mantas, coletes, bolsas, saias, vestidos e vestes cerimoniais.


O trançado de palha é outra técnica desenvolvida pelas mulheres. São usadas folhas de variadas palmeiras para a produção de diversos tipos de cestos, esteiras e abanos para o fogo. Outra técnica é a cerâmica cuja queima é feita na brasa da fogueira, e a arte em miçangas de vidro, bastante popular desde que chegaram até os Huni Kuin. Com esse material, são criadas pulseiras, colares, tornozeleiras e pequenas bolsas. Outros adornos usam materiais como sementes, penas e dentes de caça.


Cosmovisão

As artes produzidas no contexto das cosmovisões indígenas, seja da África, do Brasil e de outros lugares, estão diretamente relacionadas com aquela visão de mundo, portanto, não existem deslocadas dos seus sentidos, significados e do seu pertencimento. A arte têxtil, como outras manifestações culturais, não é vista como algo dissociado de quem a produz e da sociedade em que está inserida - o têxtil é parte dela, possui funções específicas.


“Na cosmovisão Huni Kuin existe uma relação de tecituras, as imagens que são tecidas estão relacionadas com rituais, que vão trazer a figura da jiboia, a cobra grande. Ela é o ser encantado, que vai trazer os grafismos, as mensagens e os desenhos daquele povo”, explica a designer gráfico e de moda, Julia Vidal, que também é educadora de moda decolonial e tem como propósito a valorização da diversidade cultural brasileira.


O grafismo característico do Kene Kuin foi transmitido pelo encanto da jiboia, que ensinou as mulheres sobre os seus grafismos.


Tecitura

Os desenhos manifestados no ritual são passados para a tecelagem, e neste processo entra a tecitura, movimento que é inspirado pela aranha Basnen Puru, que ensina as mulheres a fiar e a tecer. O animal têm grande visibilidade também em outras sociedades e cosmovisões com relação ao tecer. As mulheres Huni Kuin cantam pedindo a força da aranha durante todo o processo de colheita, descaroçamento, bater e fiar o algodão, e também para se tecer rápido e com excelência.


Isso demonstra uma cosmovisão onde o reino animal está completamente em simbiose com o reino humano, formando um ecossistema de teias que se relacionam, como ressalta Julia. “O têxtil vai trazer as visões, os grafismos que são fruto desse contato com a cobra grande. É a partir da pele do animal que os desenhos serão sistematizados e o têxtil vai trazer a força e a conexão com esse animal de poder, a relação com a grande divindade desse povo”.

O lugar sagrado ocupado pelo têxtil na tradição Huni Kuin traz uma conexão de mundos e a função dos encantados e da ancestralidade. O grafismo representa aquele povo, o que é muito diferente da criação individual de uma cosmovisão ocidental, cujos produtos levam uma assinatura. O pertencimento naquela sociedade é caracterizado por uma coloração, tecitura, tipo de grafismo e de desenho que vai relacionar determinada peça como uma manifestação da etnia.


O vínculo com o ecossistema em que estão inseridos está representado também na relação com os pássaros, especialmente com os Japiins, chamados Txana no idioma do povo Huni Kuin. O pássaro é considerado um grande mestre da tecelagem por conta da forma com que constrói o seu ninho. Por meio de um entrelaçado de folhas e fibras, é criado um formato semelhante a uma bolsa arredondada, chamada de “rede do Txana”. O abrigo, que protege das chuvas e vento e os mantém aquecidos, é a inspiração para as casas e redes utilizadas pelos Huni Kuin.


Comercialização

Assim como para outros povos indígenas, os Huni Kuin têm buscado gerar renda para as famílias por meio da venda de produtos, como vestidos, túnicas, redes, bolsas e até mesmo máscaras para prevenção ao coronavírus. As máscaras e outros produtos, são comercializados, entre outros lugares, pelo Oca - Observatório Cultural das Aldeias, que mantém um projeto voltado a mulheres artesãs indígenas e não indígenas, o Oca - coletivo de artesãs, onde são desenvolvidos artesanatos voltados para a cidade.


Muitos produtos ainda são feitos com tingimento natural, mas buscando diminuir o tempo de produção, também estão sendo usadas linhas industriais. Com isso, hoje é possível encontrar peças de cores variadas, como vermelho, lilás e verde. Ainda assim, existe a possibilidade de adquirir uma peça original (de algodão orgânico e tingida naturalmente), por um valor um pouco maior. A compra dessas ultimas contribui para que processos culturais importantes, como fiar e tingir, não sejam substituídos pelo uso das linhas industriais de algodão proveniente do agronegócio.


No caso da comercialização, há uma vontade de integrar de alguma maneira as sociedades. “Eles estão buscando adaptar o processo deles para dialogar com a cidade. É uma forma das pessoas que não estão lá entrarem em contato com a sua cultura e conhecer a arte a partir desse primeiro contato”, explica Julia.


O processo de produção em simbiose com a natureza se concretiza desde a concepção da sustentabilidade, de compreender os ciclos de retirada, de como trabalhar a matéria-prima e os ciclos do algodão. Estão incluídos aqui os processos de tingimentos naturais e as técnicas de tecitura, feitas com extrema habilidade e rapidez, até a finalização e fechamento das peças que é “absolutamente incrível em termos de design”, observa Julia.


A designer ressalta que a tecelagem Huni Kuin tem uma caraterística de excelência que vem nos mostrar como esse pensamento de olhar para a moda somente a partir de um lugar é excludente, preconceituoso e racista.


Conhecer os processos da natureza, de saber e fazer moda a partir das cosmovisões dos povos originários brasileiros, entender as questões de conexão com territórios, de reflorestamento para a preservação, além do sistema de memória, que está ativo quando a iconografia é passada de geração para geração é algo de grande valia. “Para mim essa arte representa a complexidade e a sofisticação dessa moda que é brasileira e que a gente não conhece. O mais importante é passar a dar valor ao que é produzido no Brasil com excelência, sabedoria, sustentabilidade e circularidade”, ressalta.


Conversamos com Diana Paris Rodriguez, idealizadora e coordenadora do Projeto Mulheres Huni Kuin (@hunikuinwomen), da Aldeia Boa Vista, Rio Jordão, no Acre, sobre liderança feminina e cosmovisão.


Maspã Huni Kuin em processo de fiação do algodão, cultivado a partir de semente ancestral.

Foto: Bruna Brandão © Copyright Instituto Yube Inu


URDUME. Como se deu a sua aproximação com as mulheres Huni Kuin?

Diana Paris: Comecei a trabalhar com o povo Huni Kuin em 2016, inicialmente na implementação de um projeto de ponto de cultura, com o grupo Kayatibu, de jovens Huni Kuin da zona urbana do município de Jordão, no Acre. Desde o início me conectei principalmente com as mulheres e à medida que fui conhecendo-os mais profundamente, percebi a importância das mulheres dentro das aldeias. Elas são a grande força motora de suas comunidades, lidando com inúmeras tarefas diárias no cuidado da casa, dos alimentos, das crianças, da água, do fogo e ainda produzindo diversos tipos de artesanato pra venda ou uso familiar. A maior parte das tarefas é dividida entre gêneros, então eu passava muito tempo com as mulheres em seus afazeres, por isso a aproximação se deu de maneira natural.


URDUME. Pode contar um pouco como aconteceu a relação estabelecida com a Bunke Inani, uma das lideranças femininas da aldeia?

Diana: Cada aldeia Huni Kuin tem sua própria organização interna e diversas lideranças representativas que atuam na comunidade. A maior parte dos que estão à frente das tomadas de decisão são homens, mas essa situação tem aos poucos se transformado e mais mulheres estão adentrando esse espaço. A Aldeia Boa Vista, localizada na Terra Indígena Kaxinawa do Rio Jordão, que é onde trabalho atualmente, é uma das pioneiras com relação ao empoderamento das mulheres. Criaram um grupo feminino chamado Yube Nawa Aîbu (Mulheres jiboia) para dar voz a esse movimento. Bunke é uma das lideranças femininas dentro da comunidade, mas não é a única. Existem também mulheres mais velhas que exercem importantes papeis. Bunke Inani (Maria Socorro Kaxinawa), no entanto, tem uma grande capacidade de organização e coordena a produção de artesanato e a pesquisa de músicas e medicinas ancestrais entre as mulheres, ela também viajou por diversos países e colabora com essa ponte entre a floresta e o mundo. Desde que comecei a trabalhar na aldeia Boa Vista, em 2017, me conectei com sua força e personalidade e ela compartilhou comigo seus sonhos de ajudar as mulheres de sua aldeia e de seu povo e também de outros povos. Aos poucos esse sonho foi tomando forma e resolvemos criar, em parceria com o Instituto Yube Inu, a Vivência das Mulheres Huni Kuin (@hunikuinwomen), uma jornada para aproximar mulheres, fortalecer e valorizar os saberes femininos da aldeia.


URDUME. Como é compreendida a cosmovisão do grupo, o papel da liderança feminina e seus fazeres ancestrais neste contexto?

Diana: A cultura é uma coisa viva, dinâmica, que se transforma através do tempo e espaço e isso não é diferente entre os povos indígenas. Muitas atividades e funções sociais que eram consideradas de exclusividade masculina para o povo Huni Kuin, como a condução de cerimônias de ayahuasca ou mesmo o papel de “shane ibu” (cacique) de uma aldeia, tem aos poucos se transformado também em papéis femininos. Mas, para além disso, as mulheres carregam legados ancestrais importantíssimos em tudo que concerne aos cuidados familiares. A colheita e preparo de alimentos, as plantas medicinais relacionadas aos ciclos femininos, parto e cuidado das crianças e as diversas técnicas de artesanato.


URDUME. As populações indígenas foram bastante atingidas pela pandemia e estão entre as menos assistidas pelo Estado. Como você vê a situação atual dos povos indígenas no país?

Diana: Existem muitos povos em todo o Brasil e cada um desses povos vive situações socioeconômicas, culturais e geográficas diferentes. De maneira geral, as populações indígenas tem sofrido impactos gravíssimos com a pandemia. Os modos de vida comunitária, a baixa imunidade a esse tipo de doença, a falta de acesso a hospitais torna esses povos grupos extremamente vulneráveis. Desde o início da colonização as epidemias vem dizimando etnias inteiras. Além disso, como a doença tem uma mortalidade mais elevada nos anciões ela representa um grave risco para toda uma cultura. Os anciões e anciãs são as bibliotecas de um povo, guardiões da cultura oral dos saberes e da língua. Quando um morre não se perde apenas um ser humano, mas também todo um legado. A política do Estado nessa situação se revela claramente genocida e a pandemia tem servido muito bem ao propósito exposto desde o início nos planos do governo, de desmantelar as leis e organizações de suporte e proteção as terras indígenas e seus povos, visando explorar esses territórios. É uma situação muito infeliz e que nos dá a sensação de impotência. Mas é parte do nosso dever como seres humanos colaborar da maneira que pudermos para amenizar essa situação. Existem muitas campanhas e projetos em curso para dar suporte aos povos indígenas nesse momento crítico.


URDUME. Como esses fazeres resistem e seguem renascendo como forma de resistência desde a colonização?

Diana: A ciência e tecnologia indígena, considerando que a ciência é uma forma de saber e a tecnologia uma forma de fazer, tem muito a nos ensinar. Para muitas comunidades tradicionais, o trabalho possui um conceito muito mais amplo do que uma mera atividade de sobrevivência. Os fazeres artesanais são ao mesmo tempo um trabalho artístico, espiritual e também uma maneira de suprir as necessidades cotidianas. A produção de uma peça de cerâmica, de um tecido ou de um cesto é muito mais que a confecção de um objeto para uso diário. Cada objeto carrega um legado, um ensinamento transmitido de geração em geração, grafismos e técnicas com significado espiritual que comunicam algo. Além disso possuem uma ligação com a natureza local, com o conhecimento da artesã ou artesão, do material disponível no ambiente e de sua extração sustentável. Dessa maneira, os fazeres indígenas são também uma forma de resistência, de afirmação cultural.


URDUME. Como você analisa o lugar do trabalho manual indígena no cenário atual?

Diana: Mundialmente as pessoas vem percebendo que o sistema capitalista está em colapso. A exploração ilimitada de recursos naturais e da mão de obra, a poluição e o aquecimento global vêm contribuindo para uma busca de novas soluções para a crise que enfrentamos. Nesse cenário os povos indígenas tem muito a nos ensinar sobre uso sustentável dos recursos, uma visão mais holística com relação as conexões entre as sociedades humanas e a natureza, sobre as maneiras de fazer e as visões do saber e também a pensar não somente no indivíduo, mas no coletivo. Com relação aos trabalhos manuais é uma possibilidade também de parcerias para criar novas formas de economia que sejam solidárias, sustentáveis, justas. É importante não se apropriar dos conhecimentos indígenas para uso próprio, mas sim criar pontes que possibilitem uma economia que mantenha a floresta em pé. Quando adquirimos um artesanato indígena apoiamos a criação dessa realidade e também recebemos um objeto que é parte da riqueza cultural da humanidade.



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