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Carta aberta a Cláudia Raia - O crochê pode muito mais do que oprimir uma mulher




Cláudia, no último dia 27 de junho, em sua participação no programa Saia Justa, do canal GNT, você disse que: “a mulher de cinquenta (anos), há dez anos estava fazendo crochê em casa e achando que a vida dela tinha acabado, hoje ela está potente, ela está trabalhando”. Sua frase, preciso dizer, não soou bem aos ouvidos de crocheteiras de todo Brasil, que têm manifestado sua insatisfação nas redes sociais, já que sua afirmação reforça algumas das várias visões estereotipadas sobre o crochê.


Ainda assim, escrevo esse texto não como uma reclamação, mas como um convite. Já que estou certa que sua intenção não foi ofender ninguém. Afinal, como todos nós sabemos, os trabalhos manuais têxteis são historicamente associados ao ambiente doméstico e à falta de escolha. Para mulheres brancas, de classe média para cima, sempre foi um passatempo, para mulheres pobres e racializadas, precária fonte de renda. Para todas elas: cuidado com a casa, com a família, com a moral e com os bons costumes.


Você, Cláudia, se o Google estiver certo, tem 55 anos. Nascida na década de 1960, durante a segunda onda do feminismo e, próximo aos movimentos de contracultura, é fruto de uma geração de mulheres que, na busca por direitos iguais aos dos homens, rompe com o ambiente doméstico em busca de reconhecimento público. Movimento, aliás, importantíssimo.


Esta, e gerações, seguintes, da qual você faz parte, nos deram de presente a legalização do divórcio, a liberação moral do sexo casual e maior espaço no mercado de trabalho. Mulheres que lutaram pelo fim da vida de “dona de casa” e tudo aquilo que viesse a reboque. Com tanta liberdade, tanta coisa para fazer, porque mesmo alguém iria querer sentar no sofá para fazer crochê? Em outra ocasião talvez respondesse: porque é arte, mas hoje, gostaria de te falar sobre aspectos mais sociais dos fios.


Em primeiro lugar, te falando porque de forma generalizada entendemos o crochê como uma atividade de vovô e os preconceitos embutidos nessa ideia. É que se, até meados da década de 1970, os trabalhos manuais têxteis ainda eram ensinados às mulheres de geração em geração, ou mesmo nas escolas, nos últimos 50 anos (quase a sua idade), a prática caiu em desuso. A partir da década de 1980/90, muitas mães não só não viam necessidade de passar esse tipo de conhecimento à frente, como acreditavam que seria um desvio de foco do que realmente importava, os estudos. Certamente uma vitória para aquelas que haviam passado séculos sendo incentivadas a fazer exatamente o contrário.


Além disso, as mulheres tinham menos tempo. Como bem sabemos, o fato da mulher trabalhar fora não fez com que os homens passassem a dividir as tarefas de casa. Como solução, o mercado nos ofereceu comida congelada, roupas mais acessíveis (embora de menor qualidade), nos poupando das necessidades de realizar remendos ou consertos, e simplificando a vida na hora de arrumar a casa, fazendo sair de moda toda a decoração excessiva (adeus toalhinhas de crochê, antes símbolo de uma casa bem cuidada).


Dessa forma, a sobrevivência da técnica ficou nas mãos das mulheres que “desocupadas”. Aquelas que “não trabalhavam”, as que “tinha tempo”: aposentadas, tias sem filhos, as “vovôs”.

Mulheres que já tinham cumprido suas “obrigações” (casar, ter filhos, criá-los, etc.) e então, para se ocuparem, frequentavam armarinhos e divertiam-se fofocando ("tricotando") como suas revistas de receitas de crochê. Mulheres, inclusive, que à medida que o tempo passava, estavam entrando em “extinção”. Sobre isso, lembro bem de uma entrevista que fiz com um profissional do marketing de uma grande empresa de fios. Em off, ele me confidenciou que no começo dos anos 2000, lamentavam a morte de cada senhorinha, sem a entrada de novos clientes, previam o fim da empresa.



Acontece que há dez anos, o mesmo tempo que, segundo sua fala, a vida da mulher de 50 anos mudou, o crochê mudou também. Faz pouco mais de uma década, que diante de um novo cenário, aquilo que estava tão velho, que poderia morrer, ganhou vida nova. Em agosto de 2011, a capa da Revista São Paulo, da Folha, trazia Cristiane Bertolucci sob o título de “As novas vovôs”, com reportagem onde se lia: “a nova mania da cidade: fazer tricô. Saem os cabelos brancos, a cadeira de balanço, as lãs em cores pastéis…”. Naquele tempo a comparação até fazia sentido, hoje não faz mais.


Sabe porquê? De lá pra cá, os Sescs de todo país viram sua demanda por aulas de manualidades têxteis aumentarem vertiginosamente. As consequências da produção das fast fashions escancarou sua insustentabilidade e, como resposta, ganharam força os movimentos de slow fashion e o do it youself. As telas passaram a ser tão presentes em nossas vidas, que cada vez mais pessoas buscam atividades como o crochê como ferramenta de saúde. Por último, e mais importante, a terceira onda do feminismo nos mostrou que sermos iguais aos homens não precisava ser o único caminho e nem era necessário abrir mão daquelas atividades tidas como femininas.


Desde então um movimento de retorno ao manual tem acontecido. As redes sociais ajudaram muito nisso, reunindo pessoas com o mesmo interesse, mas também às urgências climáticas e o reconhecimento de outras vozes e narrativas, que seguem ressignificando o que antes era visto como atraso ou algo menor. Autoras feministas como Silva Federeci nos falam que “o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”, portanto o trabalho doméstico precisa deixar de ser visto como algo melhor, para ganhar o reconhecimento e pagamento pelo que de ele de fato é: a estrutura que sustenta o mundo.


Sabe Claudia, se o crochê já foi um dia símbolo de opressão das mulheres, hoje ele é muito mais que isso. É a base do negócio de muitas mulheres, técnica utilizada por artistas para protestar por direitos reprodutivos, meio pelo qual presidiários e ex presidiários vêm fazendo história no mundo da moda com Projeto Ponto Firme , ferramenta terapêutica e forma de expressão artística.


Por isso, essa carta é um convite de ressignificação de termos, ideias. Atualmente em 2022, o crochê já não é mais sinônimo de ponto final, mas, como a Astrid disse, de ‘e’. Poderia te apresentar muitas mulheres que, aos 50, estão em plena potência, trabalhando, justamente por causa do crochê.


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