top of page
  • 2 de out. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 1 de mar. de 2021


Famosa entre as décadas de 1970 e 1990, as máquinas domésticas de tricô - que caíram

no esquecimento da maioria das pessoas - ganham vida nova com as mãos e cores de Jéssica Costa


ree
crédito das fotos: Juss

Na década de 1960, época de forte industrialização no Brasil, imigrantes italianos se instalaram na região das cidades de Jacutinga e Monte Sião, em Minas Gerais. Entre eles, estava o jovem Antônio Pieroni, responsável por trazer a primeira máquina manual de fazer tricô para o país, a Lanofix, transformando a região em referência nacional na fabricação de malhas e tricô.


Febre entre as décadas de 1970 e 1990, hoje em dias as máquinas domésticas de tricô são desconhecidas da maioria das pessoas. Diferente das máquinas domésticas de costura, as antigas Lanofix - como ficaram conhecidas na época - deixaram de ser popular com o tempo e, apesar de ainda serem produzidas, a tecnologia continua a mesma, o que faz com que seja mais comum adquiri-las de segunda mão.


No meio termo entre um tear e uma máquina digital, as Lanofix ou Brother (marca japonesa importada pela a Elgin durante muito tempo) não fazem com que a feitura do tricô deixe de ser manual, como nos explica a artista e mentora têxtil Jéssica Costa, de 31 anos que, quase 60 anos depois, ajuda a manter o ofício vivo.


Na sua Casâtelie, na Vila Madalena, em São Paulo, Jéssica, que é formada em designer de moda, dá aulas de design em tricô para estudantes de moda interessados na técnica que aprendeu no extinto Atelier Knit-1, em Brighton, na Inglaterra. Foi em seu espaço também, rodeadas de máquinas de tricô dos anos 1980 e 1990, que ela recebeu a Revista URDUME para um bate-papo sobre seu trabalho. Com um estilo marcado pelo uso das cores, a artista nos contou sobre como seu encontro os fazeres manuais e sua paixão pelo tricô.


URDUME. Jéssica, de onde surgiu seu interesse por máquinas de tricô domésticas? Existia uma na sua casa?

Jéssica Costa. É curioso, porque a minha história não tem essa bagagem familiar, a minha mãe gosta mesmo é de dançar (risos). O meu interesse veio mesmo quando entrei na faculdade moda e me interessei pela área têxtil. Eu lembro de uma professora dizer que as grandes inovações viriam daí, dos novos tipos de materiais e superfícies. Então comecei a me interessar por, conheci o trabalho da Sandra Backlund [designer de moda sueca especializada em esculturas de tricô] e despertei para as técnicas manuais. Comecei a fazer aulas em armarinhos, mas as professoras tinham dificuldade em me ajudar quando queria criar algo diferente. Meu TCC [trabalho de conclusão de curso] eu já fiz todo em técnicas manuais e a conexão qu etemos com os objetos e memórias. Eu nunca me identifiquei com esse mercado tradicional da moda, essa coisa de criar coleções, então fui trabalhar em uma multinacional de fabricação de produtos têxteis e de costura. Ali eu já atuava com técnicas manuais, mas decidi me aprofundar e fui fazer um curso na Knit-1 [famosa escola de tricô que existia na Inglaterra]. O que era para ser um curso nas minhas férias de um mês se tornou em sete meses de estudos. Foi lá que aprendi a trabalhar com as máquinas de tricô e mergulhei em novas referências.



URDUME. E você já voltou decidida a trabalhar com a técnica no Brasil?

Jéssica Costa. Eu voltei e pensei como eu gostaria de ter tido esse tipo de informação e formação na minha época de estudante, e reparei que nas faculdades de moda de lá o aluno está sempre muito ligado ao fazer, eles tem Knit labs [laboratórios de tricô] como todo o ferramental, por exemplo. É diferente daqui em que somos estimulados a desenhar, mas não colocamos a mão na massa, não sabemos como funcionam os materiais. Quando eu voltei também quis visitar Monte Sião (MG) [considerada a capital do tricô] porque queria conhecer como se dava esse processo de criação de malharia aqui no Brasil. Os italianos imigraram para aquela região foram os grandes responsáveis por trazer a máquina de tricô doméstica para cá e popularizar o nome Lanofix no Brasil. Lá a profissão de programador é muito cobiçada, já que hoje em dia eles usam máquinas digitais e de produção acelerada, e isso me fez perceber também a lacuna que existe entre o designer e o programador, um não entende do sistema e o outro de peças. É quase um “telefone sem fio” que dá margem a um dos nosso grandes problemas, a cópia e a repetição. Quando você não tem recursos, você reproduz o que já existe. Foi aí que pensei que o conhecimento que adquiri poderia ser útil, porque o que você aprende na máquina doméstica pode ser utilizado para o trabalho manual, mas também em escala industrial. Me tornei então algo que nunca havia imaginado, virei professora.


URDUME. E como é dar aula de uma técnica que nem todo mundo conhece?

Jéssica Costa. É muito curioso, porque as máquinas de tricô eram muito populares antigamente. Era normal ganhar uma máquina de costura e tricô quando você se casava, por exemplo. Na nossa geração isso acabou se perdendo e a máquina de tricô ficou bem menos popular do que as de costura. Eu dou muita aula para estudantes de moda que não faziam ideia da existência dela antes de saberem dos meus cursos, e até quando eu vou ofertar o curso para outros espaços, como o SESC, é difícil as pessoas entenderem o que é. Isso porque a nossa conexão com máquina hoje em dia é muito diferente, pensamos em algo que funciona sozinho e automatizado, a máquina de tricô doméstica está muito longe disso, apesar de ser uma máquina, o sistema dela é todo mecânico, o que a torna uma máquina manual .

É o meio entre um tear e uma máquina ligada a energia elétrica. elas vieram com o objetivo de atender a demanda de fazer peças em casa, são diferentes das máquinas indústrias, ela até fecha como uma maletinha, então a ideia era que fosse algo transportável, que você pudesse levar para qualquer lugar.


ree


URDUME. Nós ainda encontramos máquinas como essa para vender?

Jéssica Costa. Ainda existe uma fabricação de réplicas dessas máquinas na China, no Brasil elas são importadas pela Lanofix, que ainda existe. Mas de modo geral elas são adquiridas de segunda mão. Uma máquina dessas importada não é barata. Aqui no ateliê são todas das década de 1980/90, por isso elas têm esse aspecto meio vintage. A máquina que parece mais moderna, porque tem um painel que funciona de forma parecida com um “Pense Bem” [ brinquedo intitulado como um minicomputador nos anos 1980] tem 31 anos. Eu trouxe do Japão com a ajuda de uma artista têxtil que já conhecia do Instagram, mas com quem tive contato quando estive lá. Ela me ajudou a Hackear a máquina e hoje consigo ligá-la ao computador.



URDUME. É por esse mecanismo que você consegue realizar o seu trabalho com as ondas sonoras? [Jéssica fez uma intervenção artística no Festival A Festa, promovido pelo SESC, em que materializa as ondas sonoras de mulheres através da máquina de tricô]

Jéssica Costa. Sim, há um tempo eu queria me arriscar mais como artista têxtil e essa foi uma oportunidade de conectar o meu fazer manual com uma temática contemporânea tão forte que é o feminismo. A ideia deste trabalho é abordar o conceito das ondas da voz. Pegar vozes femininas, sempre tão abafadas, e eternizá-las a partir do tricô. Com essa máquina é possível fazer isso, captar essas vozes e transformá-las em fios.



URDUME. Qual o futuro do tricô à máquina, ainda tem muita gente fazendo?

Jéssica Costa. É curioso, porque apesar de ser uma técnica muito nichada, existem muitos artistas têxteis utilizando ela pelo mundo. O bom da internet é que ela proporciona esses encontros, e isso faz a gente ver que não somos tão poucos assim. Somos um grande grupo de pessoas, só que espalhados por aí.









 
 
 
  • 2 de out. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 1 de mar. de 2021

Projeto Ponto Firme leva afeto, estética e design para dentro da prisão, promovendo transformação social a partir do crochê.


Por Estefania Lima - entrevista publicada na Urdume #03


ree
Gustavo Silvestre ensina crochê na prisão. crédito das fotos: Danilo Sorrino

Nascido no Recife, o estilista e educador Gustavo Silvestre se lembra de observar as mulheres de sua família reunindo-se para abrir suas caixinhas para crochetar, “eram verdadeiros tesouros que elas tiravam dali - linhas, fios e agulhas”. Um costume que ele observava de longe, já que sempre escutou que crochê era coisa de mulher. Algo que, décadas mais tarde, Gustavo mostraria não ser verdade. O estilista não só se tornaria um exímio crocheteiro, como criaria o Ponto Firme, projeto no qual ensina crochê em um dos ambientes mais machistas da sociedade, a cadeia.


Segundo levantamento de 2019, do site G1, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com prisões que estão quase 70% acima de sua capacidade, e totalizam 750 mil presos, se forem contabilizados os que estão em regime aberto e os detidos em carceragens da polícia. Em três anos, data do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do governo, o país recebeu mais 61 mil presos para as suas celas já superlotadas. Uma maioria de pessoas negras, pobres (61% dos presidiários possuem esse perfil, enquanto apenas 53,63% da população brasileira têm essa característica), e desescolarizadas (75% desses presos não possuem ensino fundamental completo).


É com essa realidade que Gustavo Silvestre se depara semanalmente, desde que começou o projeto Ponto Firme. Desde 2015, o estilista oferece, voluntariamente, capacitação técnica em crochê para detentos da Penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos - SP.


De lá pra cá, Gustavo, que já havia encontrado no crochê uma forma de ressignificar seu trabalho com a moda, descobriu que a técnica poderia ser também uma ferramenta de educação. Em seu , o estilista olha para essa ferida social que é o encarceramento, revelando a humanidade que resiste dentro de um sistema criado para vigiar e punir. Em quatro anos de projeto, a iniciativa que se destaca por seu valor estético, foi tema de diversas matérias jornalísticas, e já virou exposição de arte, desfiles na Semana de Moda de São Paulo (SPFW) e até mobiliário de uma loja em Nova York.


Para saber mais sobre a origem desse projeto e os caminhos que ele ainda pode seguir, conversamos com Gustavo Silvestre, confira a entrevista a seguir:



Revista URDUME. Gustavo, de onde vem a sua relação com crochê?

Gustavo Silvestre: Eu sou de Recife e todas as mulheres da minha família faziam crochê. O tempo todo elas se juntavam para crochetar, e eu ficava só de olho, observando elas abrindo as suas caixinhas e tirarem de lá seus tesouros - linhas, fios e agulhas. Mas tudo de longe, porque se eu chegasse perto já ouvia um: “sai pra lá, que isso não é coisa de menino”. Anos se passaram e me tornei tornei estilista, e mesmo antes de saber fazer crochê, minhas peças já tinham relação com o fazer manual.


URDUME. E quando você aprendeu a fazer crochê?

GS: Tudo começou quando uns empresários viram a minha marca, adoraram, mas disseram que era muito cara e que eu precisava produzir na China. Me organizei, fiz uma viagem para lá, e voltei arrasado, com crises sobre autenticidade e consumo, porque eu passei a perceber que alguma coisa na conta do fast fashion não fechava. Então assim que eu voltei, encerrei minha marca, e comecei a dialogar com a Chiara Gadaleta [estilista referência em cadeia de moda sustentável] sobre nosso papel, como pessoas do mundo da moda, nesse sistema. Foi quando comecei a trabalhar com ela no projeto “Mãos do meu Brasil”, no qual mapeamos iniciativas artesanais pelo país, e durante essas viagens eu a via crochetar. Notando o meu interesse, ela me presenteou com uma aula na Novelaria [Knit café localizado em Pinheiros - São Paulo], e daí em diante, minha vida mudou.


URDUME. Foi o seu momento de reconexão com a moda?

GS: Sim, porque toda a minha crise quando eu encerrei minha marca foi: “O que eu faço com a minha experiência na moda? Jogo tudo fora?” E com o crochê entendi que eu não precisava abandonar tudo, eu podia aproveitar o conhecimento que eu já tinha. O que foi ótimo, porque hoje o crochê que eu faço chama atenção não só porque sou um homem fazendo crochê, mas, principalmente, porque uso técnicas de modelagem e o crochê como um tecido.


URDUME. E o projeto Ponto Firme nasceu desse reencontro?

GS: Na verdade a ideia surgiu com um senhor de uma pastoral, uma pessoa que faz um trabalho muito importante dentro da penitenciária, e que apareceu na Novelaria procurando alguém que pudesse dar aulas de aprofundamento para homens que já faziam crochê na cadeia. Como eu fui o primeiro homem a fazer aula na Novelaria, me procuraram com essa proposta. Eu, que estava em um momento em que achava os meus problemas muito grandes, e já vinha conversando com a minha terapeuta sobre a possibilidade de fazer trabalho voluntário, achei que aquela era a oportunidade. Tudo aconteceu muito rápido. Em uma semana preparei e apresentei o projeto, na semana seguinte já estava lá.


URDUME. Como foi essa proposta inicial?

GS. Comecei despretensioso, não me achava professor. Eu já dava workshops, cursinhos, e achei que fosse ser assim, uns quatro, cinco encontros. Muitos amigos me perguntavam se eu não tinha medo, diziam que eles [os alunos] podiam me furar com uma agulha, me enforcar com a linha, e eu só respondia: “Estou indo de coração aberto levar algo que foi bom pra minha vida, ponto”, Por intuição, já no primeiro dia de aula decidi trazê-los para perto pelo viés afetivo. Perguntei: “Quem aqui tem alguém na família que faz crochê?” Todo mundo respondeu que sim. Pensei, então começamos bem, todos temos algo em comum, e contei a minha história. Começamos com 11 alunos, e hoje temos 28, desde então 120 já passaram pela turma.



URDUME. E quando o Ponto Firme começou a ganhar as ruas?

GS. Desde o primeiro ano. Já em 2015 participamos da campanha do agasalho da Prefeitura de São Paulo fazendo peças para moradores de rua. No ano seguinte, fizemos uma exposição de tapeçarias na Novelaria. Mas o ponto de virada mesmo aconteceu em 2017, quando começaram aparecer as primeiras roupas durante as aulas. Eu levava revistas, já tinha ensinado eles a lerem receitas, e eles começaram a se aventurar nesse universo. Mesmo não querendo voltar ao mundo das passarelas, sabia que não haveria outro modo de mostrar aquelas criações se não com um desfile, então fomos atrás dessa produção. Pensei em algumas possibilidades para que essa ideia acontecesse, mas resolvi ir até o Paulo Borges, [idealizador e diretor criativo do São Paulo Fashion Week], que para minha alegria foi muito receptivo à proposta, e pedir o espaço. Foi uma ação estratégica, porque é esse o tipo de visibilidade que precisamos trazer para uma população que está à margem da margem. Eles, e a família deles, precisam ver que o que fazem têm valor, é bonito. Então, já que estávamos ali, projetando um desfile, precisávamos chamar atenção para a causa. O primeiro desfile aconteceu ano passado e o segundo esse ano. Na verdade já foram realizados quatro desfiles, porque foram dois no SPFW e outros dois na penitenciária, para que os meninos pudessem assistir o desfile de suas criações.


URDUME. Os desfiles geraram muita visibilidade para o projeto, aconteceram outros desdobramentos depois deles?

GS. Muita coisa aconteceu depois disso, até porque eles começaram a sair [da penitenciária]. Hoje já temos cinco deles aqui fora, e agora o processo é outro, outros contextos, e eu me esforço semanalmente para encontrar trabalho para eles, porque a concorrência com o crime é pesada. Um deles, o Thiago, participou da SP Arte, performando comigo, a convite da Galeria Vermelho. E sabe, o Thiago foi o cara que, no primeiro dia de aula, me perguntou o que já haviam feito em crochê que estivesse no Guiness Book. Uma pergunta que mexeu comigo, porque atrás dela tinha um desejo de ser grande na vida. Acho que foi naquele momento que eu entendi que não seriam só quatro encontros, que eu tinha um compromisso com aquelas pessoas. Ele não entrou no Guiness Book, mas criou uma ponte de crochê que o levou da cadeia ao SP Arte. Nem todos se tornarão artistas, mas me alegra saber que esse pode ser um caminho, como aconteceu com um outro aluno meu, que usou o dinheiro que recebeu para fazer um provador de crochê para uma loja no Soho, em NY, para pagar a autoescola e tirar sua carteira de habilitação.



ree
crédito: Danilo Sorrino

URDUME. Que compromisso foi esse que você entendeu ter com os seus alunos?

GS. O de educador, uma ficha que caiu quando ganhei de presente de um deles algo que eles chamam de artesanato de cadeia. Uma caneta toda trabalhada em um trançado têxtil lindo. De um lado estava escrito Gustavo, do outro professor. Esse foi o meu canudo.


URDUME. E depois que você se deu conta que era professor, o que mudou?

GS. Eu me dei conta da importância do acompanhamento. O trabalho não se encerra na técnica, ele começa por ela. Começa no momento em que eu inicio o meu trabalho usando como matéria-prima aquilo que eles já sabem fazer. Um processo assim é muito diferente de um workshop de poucas horas em que você tem um produto final para entregar.Sabe o professor que pega o lápis com a gente? O nosso lápis é agulha e o caderno é a linha. Porque quando você se senta do lado de outro homem, em um universo machista e homofóbico como a cadeia, e consegue se conectar, você está trabalhando na formação de um ser humano.


URDUME. O que você quer dizer com educação de base?

G.S. Por exemplo, nos primeiros contatos que tive com eles, eles não pediam nada, saiam pegando os materiais que eu levava na sacola. Mas eles não faziam isso porque iam me roubar, mas porque ninguém os ensinou é preciso pedir para mexer nas coisas do outro. Então preciso voltar dez casinhas, pedir para todo mundo se sente e espere até que eu distribua os materiais. Por isso, meu trabalho passa por essa educação de convivência, de formação humana de adultos. Claro, tenho meus mestres, como o Paulo Freire e a pedagogia Waldorf, que veio a partir da Nina, sobre a importância dos trabalhos manuais para o desenvolvimento humano [Gustavo acabou de encerrar uma pós-graduação com a Doutora em Educação Nina Veiga].


URDUME. Você passou a estudar Paulo Freire por causa do Ponto Firme?

GS. Na verdade ele faz parte da minha vida desde sempre. Minha mãe era educadora, trabalhava com educação especial em Recife, então ele sempre foi assunto lá em casa. Essa coisa de utilizar aquilo que já vem com os alunos, sabe? Porque não adianta eu chegar e perguntar se eles conhecem lã Merino [lã tida como uma das mais nobres] se a realidade dele é o barbante. Eu não desenvolvo esse projeto para usar aquelas pessoas como estatística, “ x número de presidiários que aprenderam a fazer o paninho de prato para vender no sinal”. Nada contra aprender a fazer o pano de prato, ele pode até quebrar um galho, mas não sai daquilo. E existem muitos projetos desse tipo, que querem manter a pessoa no mesmo lugar de sempre, o de subalterno. Eu não quero isso, e acho que Paulo Freire me ensina isso, oferecer base para que a pessoa desenvolva o máximo de potência que ela já tem.


URDUME. Como você torna esse trabalho qualitativo?

GS. Se eu tenho algo para dar, eu dou de todo coração e com toda a minha intensidade. Para mim, da porta pra dentro, não é mais cadeia. Eu não quero saber o que eles fizeram para estarem ali. Claro, quando eles desejam me contar, por um processo natural de confiança, tudo bem, mas se não, não. Esse cuidado eu tenho desde o começo, a preocupação de criar um espaço de afeto. Então veja, eu pego um bando de marmanjos, cheio de couraças, que sofrem desde a infância e começo por onde? Pelo afeto. Quando preparo o material individualmente, respeitando a potência de cada um, eles sabem que são lembrados, que têm importância.


URDUME. Como é a sua relação com eles?

GS. Eu tenho 28 amigos encarcerados, porque você começa a construir uma relação de amizade. Eu peço muito para que eles não voltem para o crime. Eu não tenho nenhum parente naquele inferno, graças a Deus, e nem imagino a dor das vítimas que sofreram violência, mas a gente precisa respirar fundo e olhar para a vida que essas pessoas tiveram e as razões para terem escolhido o crime. Não podemos ignorá-las. O meu convite é que a sociedade olhe pra isso, pra esse “lixão humano” que é a cadeia, onde depositamos os problemas que não queremos resolver como sociedade. Como diz Drauzio Varella, a penitenciária só serve para punir, ninguém sai melhor dali. Precisamos olhar para isso.


Revista URDUME: Seu trabalho tem se destacado por unir educação e prisão (dois símbolos de disciplina institucional da sociedade de controle), afeto, estética e design. Qual o seu entendimento sobre isso?

GS. Sei que o Ponto Firme conquistou um espaço importantíssimo, que está quebrando um padrão ao levar designer e estética para dentro da cadeia, algo que nunca havia acontecido. Muita gente acha que é só “crochê”, mas não, é uma revolução manual silenciosa. Além disso, sei que o projeto dá voz a eles. Esse ano, por exemplo, ao nos preparamos para o desfile, ouvi deles que a mensagem que gostariam de passar é a de ainda são seres humanos. Uma mensagem muito forte. Tenho percebido também o quanto está tudo bem enquanto eu sou o bonzinho que ajuda os “miseráveis”, mas o quanto o projeto passa a incomodar a partir do momento que um deles chega ao patamar de artista. Eu sei que tem muita gente ali [na prisão] com quem a vida foi dura demais e talvez essas pessoas nunca consigam mudar, mas os alunos do projeto, esses estão comprometidos, e querem de alguma maneira fazer diferente, só não sabem como. E a partir dessa brecha, que eu tento contribuir. O que eu sei é que quanto menos educação, mais criminalidade. É uma equação sem erro. Nesse sentido eu vou compondo, fazendo o que posso. Sigo por dentro, porque de fora não se muda nada. Gosto de acreditar na sementinha que cria raízes no concreto, e quando você vê, ela derrubou um muro.





 
 
 
  • 2 de out. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 1 de mar. de 2021

A Avó Veio Trabalhar, em Portugal, transforma a vida de mulheres com mais de 60 anos ao valorizar sua sabedoria e explorar as infinitas possibilidades das artes manuais

Por Estela de Andrade - entrevista publicada na Urdume #03 [ago/2019]

ree
Crédito: Deltaq Cereais

Avós reunidas em volta da mesa crochetam, tricotam, costuram e bordam. Poderia ser uma cena típica de antigamente, mas este é o cenário que encontramos ao passarmos pelas portas do espaço criativo “A Avó Veio Trabalhar”, em Lisboa, Portugal. Fundado pela designer Susana António e pelo psicólogo Ângelo Campota, o projeto reúne mulheres a partir dos 60 anos e defende que esta geração ainda tem muito a contribuir. Através da valorização do saber-fazer das avós, a iniciativa de design social mostra que é possível aproveitar a vida e planejar o futuro mesmo após os 80 anos.

Entre linhas, agulhas, fios e tecidos, mulheres se redescobrem e são desafiadas a saírem de sua zona de conforto, explorando novos terrenos. Juntas, elas criam e produzem peças que aliam técnicas tradicionais à estética contemporânea, trocam experiências com os mais jovens e vendem para o mundo todo. Só em 2018, foram produzidas mais de 600 peças e todo o lucro é revertido para a manutenção do espaço e as atividades do grupo, em geral viagens.

O projeto está em plena expansão para um local maior, que poderá abrigar não só mais participantes, como também eventos. A URDUME conversou com o co-fundador da “A Avó Veio Trabalhar”, Ângelo Campota.

URDUME. Como surgiu “A avó veio trabalhar”?

Ângelo Campota. A “Avó Veio Trabalhar” surgiu há cinco anos. Antes disso, a Susana [António] realizava um trabalho voluntário que explorava o papel do design como ferramenta de inclusão social com um grupo de senhoras na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Eram novas técnicas para esse tipo de público, por isso, o projeto teve muito eco na época e ela foi convidada para a Experimental Design Bienal para apresentar esse trabalho. O feedback foi bastante positivo, pois quebrou estereótipos do design como algo fancy, conceitual e artístico. O nosso encontro se deu em 2011, quando eu também coordenava um projeto inovador em Lisboa, o Remix, que consistia em uma oficina colaborativa de upcycling para refletir sobre o reaproveitamento e o desperdício industrial. O projeto envolvia atores locais e convidei uma série de designers, entre eles a Susana, para pensar objetos criativamente com base no reaproveitamento.

Por compartilhamos a mesma visão e defendermos as mesmas causas, decidimos criar a nossa própria organização, a Fermenta, para pensar e implementar os projetos que gostaríamos de realizar. Juntamos nossas experiências e surgiu “A Avó Veio Trabalhar”. Começamos em um centro comunitário, mas isso criava uma noção equivocada do que queríamos passar com o nosso projeto. Então desenvolvemos um espaço próprio, com a nossa identidade e loja, e demos um salto gigante em termos de crescimento. Assim, atraímos pessoas cheias de energia, mulheres que não queriam ser rotuladas como idosas ou velhas.


URDUME. Que mensagem vocês querem passar com o projeto?

Ângelo Campota. A idade é um superpoder, uma mais-valia e não uma maldição. Queremos mostrar que, de fato, as pessoas com mais de 60 anos têm igual valor e podem contribuir para a sociedade.A ambição de muitos é de que, com a idade, finalmente poderiam descansar, organizar-se e se dedicar à casa, mas isto tem um prazo de validade curto. Logo tudo isso já está feito e as mulheres, sobretudo, ficam sem um objetivo comum. Então, propusemos criar uma um espaço criativo em que aliamos o know-how das avós com uma linguagem mais contemporânea do design. Sempre utilizando a lógica do design colaborativo, de coprodução.

Atualmente, participam 70 avós que estão em diferentes pontos da cidade de Lisboa e várias delas vieram de outros países. Temos quatro brasileiras, por exemplo. Estamos nos mudando para um local bem maior que o atual, com 300 m², para conseguir receber ainda mais pessoas. Nossa ideia é que possamos oferecer oficinas para homens com mais de 60 anos interessados em desenvolver trabalhos em madeira, serigrafia ou pintura em cerâmica.

URDUME. Além dos produtos confeccionados pelas avós, elas estão envolvidas em outras atividades?

Ângelo Campota. Quando percebemos as demandas, rapidamente iniciamos outras atividades como decorações para festas – fizemos uma em Cannes na época do Festival de Cinema -, além de parcerias com empresas e marcas. Fizemos recentemente uma parceria com uma designer belga para uma coleção cápsula de saias evasê em crochê. Também desenvolvemos a capa do novo LP do cantor brasileiro Marcelo Camelo, concebido pela Mallu Magalhães, com linho serigrafado.

URDUME. Quando pensamos em trabalhos artesanais feitos por avós, logo vêm à mente peças com estética mais clássica. Porém, os produtos feitos pelo grupo de avós do projeto possuem design atual, com cores vibrantes. Como foi para as avós produzir peças com as quais não estavam familiarizadas?

Ângelo Campota. Elas estavam habituadas com o clichê do clichê: roupinhas de bebê, mantas, casacos. Usavam sempre as mesmas cores, o azul para os rapazes e o rosa para as meninas. A nossa proposta sempre foi trazer peças diferenciadas, mas com base na sabedoria delas. Além, de um conceito mais atual e que nos permitisse chegar a um outro tipo de público, um público mais jovem. Atualmente, são muito poucas as pessoas que valorizam essas peças que as avós faziam antigamente, como colchas de cama. Infelizmente, ninguém compra. Então, o que fizemos foi recuperar essa tradição, mas trazer um conceito novo e uma paleta de cores atraente.

As avós, inicialmente, não compreendiam as peças, duvidavam que podiam ser vendidas, mas hoje, criamos juntos. Temos um grupo máster de 15 avós e fazemos um brainstorm, trocamos ideias. Então, elas estão por dentro de todo o processo de produção, é muito colaborativo. Elas dão ideias e isso também funciona como um trabalho prévio de identificação das avós com as peças.

ree
crédito: @arlindocamacho02

URDUME. O projeto funciona como terapia, trabalho e inclusão social das avós participantes. De que maneira as artes manuais promovem o resgate da autoestima dessas mulheres? Qual o impacto do projeto na vida delas?

Ângelo Campota. Em primeiro lugar, o projeto reforça e valoriza as competências e o conhecimento dessas mulheres. E isso acontece não só no momento da produção, mas também durante a venda das peças feitas por elas, uma vez que vão para vários cantos do mundo. Todos os produtos possuem uma tag com a foto da avó que produziu, o que traz toda uma história a ser contada desde a produção da peça até chegar às mãos do comprador. Quando elas veem tudo isso e percebem que suas peças são compradas, ficam muito contentes e há uma valorização pessoal. Há mulheres que chegam aqui e que estão passando por um processo de viuvez, por exemplo. Procuram o coletivo para se sentirem apoiadas.

URDUME. Você pode nos contar a história de alguma avó?

Ângelo Campota. Temos o caso da Lucinda, que está com a gente há 2 anos e ia muito à farmácia comprar remédios para ansiedade, pois recentemente tinha ficado viúva. Um dia, a atendente da farmácia lhe recomendou “A avó Veio Trabalhar”. Em seis meses, Lucinda recuperou a sua vontade de viver e é uma mulher completamente diferente. Para você ter uma ideia, neste momento ela já procura um namorado, não se veste mais de preto, fez amigas, vai ao cinema, vai passear aos domingos, recebe para jantar... É como ter acesso a um novo suporte medicinal, elas não estão sozinhas, há uma rede de suporte.

Também temos o caso da Luísa, de 80 anos, que é incrível. Ela fundou um Centro de Reabilitação e trabalhava com terapia ocupacional. Não queria se aposentar, mas quando chegou a hora, os filhos descobriram e indicaram o nosso projeto. Desde então, ela nunca faltou um dia. Entende essa rotina como sendo seu trabalho. É uma forma de abraçar a vontade que tinha de dar continuidade a sua carreira profissional.

URDUME. No Brasil, passamos por um movimento de resgate das atividades manuais. Portugal passa pelo mesmo processo?

Ângelo Campota. O “do it yourself[faça você mesmo, em Português] é uma tendência, portanto vivemos um momento de recuperação desses trabalhos manuais e também do saber fazer. Só que esta geração, muitas vezes, não teve a oportunidade de aprender habilidades manuais com suas respectivas avós. Em nossos workshops, seja de bordado, tricô ou crochê, percebemos um público, em geral, entre os 30 e 50 anos. São pessoas que valorizam a sabedoria da avó e esse contato. Também temos o workshop criativo para turistas através de uma parceria com o Airbnb, onde turistas reservam uma experiência com a avó. Recebemos visitantes do mundo todo.

Mas também temos casos de avós que chegaram aqui para aprender. Tudo depende da geração e das suas histórias de vida. Cerca de 80% das mulheres que participam do projeto não são de Lisboa. Vieram de outros cantos do país e migraram para a capital para trabalhar. É uma geração de avós que, infelizmente, não teve contato com os trabalhos manuais das suas próprias avós. Por isso, temos algumas mulheres que chegam até nós com a ambição de finalmente poderem aprender. E valorizamos de verdade essa sabedoria.

URDUME. Em 2018, as avós fizeram uma parceria com a artista brasileira Mana Bernardes. Como foi a produção da obra "Mátria" e essa ponte Portugal-Brasil?

Ângelo Campota.“Mátria” foi uma escultura em espiral de quatro metros feita em linho com poemas bordados. Um foi escrito pelas avós e o outro foi feito pela Mana Bernardes, inspirado nessa ligação Portugal-Brasil e na força das mulheres quando elas bordam juntas. Foi um processo muito intenso, com uma experiência imersiva no cotidiano das avós, pois a Mana resolveu fazer um trabalho de autodescoberta das mulheres portuguesas. Um trabalho incrível, que culminou em uma performance no dia da abertura da exposição que foi quase catártica.

ree
crédito: @pedrosadio

URDUME. Qual o balanço dos resultados do projeto até o momento? E os planos futuros, alguma novidade que já podem contar?

Ângelo Campota. Há 5 anos, nunca imaginaríamos chegar onde estamos agora. Então, sempre que fazemos uma retrospectiva costumamos dizer que o projeto não tem cinco e sim dez anos! Porque fizemos milhões de atividades e somos um dos projetos mais conhecidos de Portugal. Diariamente, somos convidados o passar nossa mensagem e partilhar a nossa experiência por todo o país.

Estamos, neste momento, em fase de crescimento. Vamos inaugurar um novo espaço em setembro e estamos montando uma extensão do conceito da “A Avó Veio Trabalhar” na Ilha de São Miguel, nos Açores. Portanto, a nossa ambição futura é de fato continuar a trabalhar e conseguir alcançar cada vez mais pessoas. Gostaríamos também de participar em mais Design Weeks pela Europa e temos uma vontade gigante de poder fazer coisas e colaborar com o Brasil, de ir até aí para passar a nossa mensagem.


 
 
 
bottom of page