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A CASA COMO POTÊNCIA DE VIDA

Atualizado: 1 de mar. de 2021

Referência em pesquisa sobre artes manuais, Nina Veiga milita pelo retorno à valorização do lar como nosso espaço de nutrição e construção das nossas histórias


Por Estefania Lima - entrevista publicada na Revista Urdume #02 [Mai/2019]



Foto: divulgação Nina Veiga

Como anda a relação das pessoas com as próprias casas, um espaço tão significativo para a construção de cada um? A casa, lugar onde nutrimos nosso corpo e nossa alma, tem sido esvaziada por diversos motivos, segundo Ana Lygia Vieira Schil da Veiga, a Nina Veiga. E, para ela, é preciso retomar a presença desse lugar no dia a dia, que também é de extrema importância para as artes manuais.


A relação de Nina com as artes manuais começou na escola, mas ela também acompanhava os gestos de vai-e-vem de linhas e agulhas das mulheres de sua casa. E foi assim que aprendeu, desde cedo, a construir e costurar seu próprio mundo.


Por meio de uma aplicação prática de sua produção acadêmica, seja em oficinas, cursos de pós-graduação e postura de vida, a educadora fala de tudo isso: das artes manuais como modo de existir e da escrita como produção de si e do mundo, da potência da casa e os mecanismos que fizeram dela o lugar da vida. “Somos um fio pequeno que se une a um movimento muito maior de ações”, pontua.


Mestre em Cultura e Linguagem, psicopedagoga artística e doutora pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade de Lisboa, e investigadora das artes-manuais e da literatura no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT), da Universidade Nova de Lisboa (Portugal), Nina conversou sobre suas pesquisas com a Urdume durante sua passagem por Curitiba. Confira.

URDUME. Nina, como você começou a trabalhar com artes manuais têxteis?

Nina Veiga. Tudo começou pela infância, da necessidade de criar oportunidades para que a cuidadora principal de uma criança pequena, historicamente a mulher e mãe, tivesse um trabalho que permitisse a permanência dela em casa, ao lado desse filho/filha. Eu trabalhei no mundo corporativo por 15 anos e, aos poucos, fiz minha transição. Quando era consultora, usava meu tempo livre para fazer objetos que pudessem ser vendidos e, junto a isso, surgiu a vontade de trabalhar com mulheres de família de baixa renda. Naquela época, não tinha Bolsa Família, creches, e essas mulheres precisavam deixar seus filhos para fazer faxinas em outros lugares. Foi quando pensei que se elas produzissem brinquedos em suas próprias casas, poderiam ter uma renda ao mesmo tempo em que cuidavam das crianças. Passei, então, a ensiná-las a produzir brinquedos inspirados na educação proposta por Rudolf Steiner [Pai da Antroposofia] e criados por mim. Isso durou de forma mais intensa até metade dos anos 2000, apesar de seguir até hoje. Foi uma trajetória que começou intuitivamente.

URDUME. E quais foram os desdobramentos desse primeiro movimento?

Nina. Perto dos anos 2000, começaram a chegar até mim mulheres de classe média com o desejo de aprender algo que pudessem fazer com as mãos e que também fosse uma renda para contribuíssem com a casa. Eram advogadas, empresárias, bancárias - quase sempre com filhos pequenos - e esgotadas do mundo corporativo. Comecei a fazer formações abertas e, com isso, a reflexão sobre a casa veio junto. Essas mulheres passaram a encontrar potências dentro de casa e, com isso, meu ativismo pela infância, que já vinha forte da década de 90, se consolidou na formação de adultos, com educadores parentais e institucionais. Passei a fazer formação de professores, mas nunca ligada à escola, pois a ideia era (e é) tirar a escola de dentro do professor. Minha proposta é que eles entendam que, principalmente nos primeiros anos de vida, o professor não é um professor, mas alguém que faz as vezes da casa na vida da criança.


URDUME. Que casa é essa?

Nina. A casa sempre entrou no meu discurso como lugar de potência, e de potência esvaziada pelo seu valor porque a casa nunca teve valor no processo civilizatório; ela sempre foi lugar da opressão. Entretanto, em vez de buscar valor fora de casa, minha vontade sempre foi de que as pessoas vissem o valor da casa como lugar de nutrição, de liberdade e produção de vida. Nessa organização civilizatória em que vivemos, a vida não é valor, a vida vira produto. Por isso, temos tanta dificuldade de fazer as artes manuais (que têm valor de vida), virarem produto sem pervertê-las. Precisamos entender que quando compramos um produto artesanal, precisamos olhar para a história de quem o fez, porque o produto em si, é o de menos. O mais importante é a vida que apoiamos ao comprá-lo. O produto é apenas um meio. E a minha caminhada se deu assim, fui fazendo, até chegar ao doutoramento.

URDUME. E o que você estudou na sua tese?

Nina. No meu doutorado, o que me interessava era linguagem, a escrita que vem colada ao corpo que faz. Na minha prática eu adotava cadernos o tempo todo porque a escrita doméstica sempre se deu nesses cadernos diários - a casa sempre teve a sua escrita com os cadernos de receita, de poesia e tudo que é considerado menor, de menor qualidade, e vinculado necessariamente ao feminino. Então, quis olhar para a questão do valor: a quem interessa que o que se produz na casa (que é vida e não possa ser transformado em produto) não tenha valor? Esse tipo de pensamento, que transformou a casa no lugar da tela, do banho e do sono, não se sustenta mais. Por isso, decidi olhar mais de perto para onde estavam as mulheres que ainda tinham as artes manuais com prática cotidiana e o que elas traziam como potência.

URDUME. E o que você encontrou?

Nina. Encontrei um tensionamento forte entre as mulheres que o faziam porque não tinham se escolarizado, evidenciando a disputa entre o fazer braçal desqualificado versus o intelectual qualificado. Mas encontrei o mesmo em outros níveis, também naquelas que tinham as artes manuais como prática do dia a dia por escolha. Então, toda a minha pesquisa diz respeito à ideia da produção de conhecimento junto à casa e junto à vida. Produção de ciência e arte, colada ao fazer. A partir disso, constrói-se todo um edifício de pensamento, elevando o valor da casa e questionando a matriz civilizacional. Quando digo que o meu trabalho não se descola da luta indígena, negra, ambiental, é porque esses lugares de tensão são tensões de uma crise mundial. Somos um fio pequeno que se une a um movimento muito maior de ações.

URDUME. Mas essa luta pela casa não vai contra à proposta de saída da casa de alguns dos movimentos feministas?

Nina. Estamos dentro da luta da mulher tensionando um lugar que, para muitas feministas, é o lugar que devemos abandonar. Mas e se a gente não matar “o anjo do lar” [Nina faz referência a um texto de Virginia Woolf] para poder preservar nosso lugar de nutrição? Matar o anjo do lar é deixar a alma de fora da vida. Como podemos não matá-lo? Como voltar para casa sem transformá-la em um produto? Essas são questões de pesquisa. No entanto, a primeira coisa que devemos ter em mente é que a casa ultrapassa as questões biológicas e de gênero porque o homem que fica em casa também é desvalorizado. O valor da casa é o valor do abrigo, o valor da produção de vida. Historicamente isso foi delegado a quem tinha menos força e poder, a mulher. Entendido isso, a gente precisa começar a olhar como percebemos as formas de vida, como desqualificamos tudo aquilo que não se pode transformar em produto e precisa ser feito todo dia para viver. Você precisa comer e, se você não faz a sua comida, é porque alguém faz isso para você. Nós nos acostumamos a terceirizar a vida. E porque essa atividade perdeu o valor? Porque um dia alguém com mais poder obrigou outro com menos [poder] a fazer. Então, parece lógico que a mulher queira sair do espaço que sempre a oprimiu. A questão é, então, quem assume esse lugar, porque nós saímos de casa e ela ficou vazia.

URDUME. E quais são os sintomas dessa casa vazia?

Nina. Como o esvaziamento da casa acontece um fenômeno terrível: o esvaziamento do sentido da vida. E aí está o problema. Você vai para rua ser cientista, mas anexo a isso vem um esvaziamento profundo de sentido. Lavar, comer, brincar, cozinhar, passear, tomar sol, cultivar a terra, essas “bobagenzinhas”, são o que dão sentido à vida. É claro que isso não quer dizer que você precisa parar de trabalhar fora, mas que a sua jornada de trabalho precisa deixar espaço para a vida. Estamos tão habituados com essa rotina insana que não conseguimos enxergar uma saída. Precisamos de mudanças estruturais, de valor e econômicas.


URDUME. Mas de alguma forma a casa vem ganhando valor atualmente, não?

Nina. Temos que tomar cuidado porque a máquina capitalista sempre se apropria dos conceitos e esvazia os sentidos. Temos todo um movimento de “slows” cheio de nomes estrangeiros, mas normalmente quem encabeça essas ideias são pessoas de camadas sociais que não precisam trabalhar para viver. É lícito? Claro que é, isso muda cultura, mas mantém as coisas no lugar, não trabalha os territórios e precisamos pensar sobre como compor outros mundos possíveis. Se você olhar com cuidado, não fica nada no lugar. Por esse motivo, o autocuidado é tão importante, pois quanto mais enxergamos as estruturas que nos aprisionam, mais fragilizados ficamos. A casa é o lugar onde esse cuidado acontece, o lugar da micropolítica.

URDUME. Falando em cuidado, pode nos falar sobre as suas linhas de pesquisa. O que seriam as artes manuais para terapia?

Nina. Queremos pesquisar a cartografia das forças que habitam as técnicas, os fazeres, o gestual implicado na correspondência com o imaginário da ancestralidade e da casa que podem apoiar as linhas terapêuticas dentro e fora do consultório. Rodas de conversa, empresas, nosso olhar é para a ação na comunhão do corpo com o fazer. É isso também que temos pesquisado na pós-graduação de artes manuais para educação. O locus da pesquisa é a casa e os gestos produzidos na cultura doméstica em frente a necessidade. Questionamos, por exemplo a apropriação das artes domésticas, como os fios revestindo postes. O que é feito em casa só tem valor quando vai para rua?

URDUME. Então revestir um poste com fios seria algo ruim?

Nina. O poste é a composição de um discurso. Ele pode dar a pensar. Se eu desloco uma coisa, eu dou a pensar, e isso é importante, mas só se a gente não anestesiar nossos questionamentos. Ele é importante se não acreditarmos que ele tem valor e uma blusa de tricô, não. Caso contrário, estamos só alimentando o mesmo sistema. E não é isso que queremos fazer.

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