top of page

Bienais de arte são construídas a muitas mãos e oferecem ao público experiências sensíveis que marcam nossa forma de ver o mundo através da arte. Especialmente quando se trata da arte contemporânea. Chegar a Contextile - Bienal de Arte Têxtil Contemporânea, foi sobretudo uma experiência fantástica de testemunhar a potência dos artistas em dispor das técnicas têxteis para narrar ideias de mundo.


Há 10 anos que Guimarães, a cidade berço da nação portuguesa, recebeu a primeira edição da Contextile. Era 2012 e Guimarães foi alçada a capital Europeia da Cultura. Cidade esta que está localizada no Vale do Ave, cujo caudaloso rio ajudava a mover moinhos e a manter viva a tradição têxtil na região: 70% das indústrias locais atuam no setor têxtil. Havia então um contexto para iniciar uma bienal têxtil naquele território e mais que isso, em contextualizar o têxtil a partir da linguagem da arte contemporânea.


Ideias Emergentes é a empresa que propôs e projetou essa iniciativa e outras tantas nesse eixo da arte têxtil contemporânea ibérica. Conseguiu ao longo de seis edições criar um evento que provoca a reinvenção de uma cidade histórica, que promove a formação e o desenvolvimento de uma cultura da arte têxtil e que proporciona aos visitantes experiências incríveis através de corajosas interlocuções entre o passado e o presente. Pra mim não há nada mais urgente nesse momento que falarmos sobre como estamos e porque nos encontramos assim.


Para se entender a envergadura da edição deste ano vale olhar para a programação realizada pela bienal:


  • Exposição Internacional: foram apresentadas 56 obras de 52 artistas vindos de 34 países.

  • Artista Convidado: Ibrahim Mahama figura na lista dos 100 artistas mais influentes da arte contemporânea pela Art Review.

  • O Têxtil na Arte Portuguesa: exposição de obras de 10 artistas portugueses influentes em diferentes épocas.

  • País convidado: a Noruega foi representada por 13 artistas cujas obras foram expostas em 3 locais distintos.

  • Projetos satélites: Imagine! um cruzamento entre Portugal e França com exibição de obras de artistas franceses no Paço dos Duques e de artistas portugueses no Musée dÁrt Roger-Quilliot, uma parceria entre a Contextile e o FITE – Festival International des Textiles Extra Ordinaires de Clemont-Ferrand. E o Peninsulares que é um prelúdio do III Encontros Ibéricos de Arte Textil, com obras da portuguesa Rosa Godinho e da espanhola Aurélia Muñoz.

  • Residências Artísticas: vale destacar os três programas de residências, sendo um deles em parceria com a Biennale Internationale du Lin de Portneuf no Québec, Canadá.

  • Emergenciais, estímulo à educação no âmbito da criação têxtil com talks e exposição de trabalhos de cinco escolas portuguesas.

Confira algumas obras:

Estefania Tarud I Chile I Flashlight, 2022 I Tela

A artista usa a técnica do bordado clássico para recriar uma cena de uma família campesina, iluminada a luz de velas. Usa uma técnica referenciada ao cotidiano mas a trata com o refinamento dos estilos pictóricos como o pontilhismo. Integra o fundo com a imagem de forma impressionante de se ver. A obra ganhou menção honrosa no festival.


Elbi Elem I Espanha I Variable Geometries, 2020 I Vídeo e escultura

Mais um trabalho que trata dos desdobramentos provocados pela confinamento durante a pandemia do Covid-19. Elbi costura linhas dentro de um livro que ao ser aberto em suas diversas páginas, forma geometrias distintas provocando reflexões sobre a tensão, a fragilidade e o silêncio.


Sidsel Palmstrøm I Noruega I “Wall”, 2014 I Roupas, rede têxtil

A discussão sobre os modos de produção, o consumo desenfreado e a poluição têxtil estão presentes em diversas obras pela bienal, e no trabalho da norueguesa Sidsel Palmstrøm surge de forma monumental.


Paloma de la Cruz I Espanha I “Revestimento”, 2022 I Cerâmica

A artista participou do programa de residência artística da bienal com uma obra em cerâmica, criando uma representação da relação entre o tecido e a figura humana.


Ibrahim Mahama I Gana

É recorrente no trabalho do artista o uso do têxtil enquanto objeto capaz de refletir sobre descompassos entre relações comerciais, produção de mercadorias e bens primários. Ele produz obras de grandes dimensões que carregam seus temas de forma impactante. A muralha medieval de Guimarães foi ocupada por gigantescos painéis feitos de sacos de juta, criando um efeito sensorial dessa pele que os carrega, do suor, e do encontro entre as pedras do muro e o material da obra. O segundo trabalho apresentado na Bienal foi a instalação site-specific de teares gigantescos. Os tecidos provenientes dessas “máquinas” são resultantes de uma mixigenação de materiais provenientes da Africa e de Portugal. A ele interessa o erro, a falha, aquilo que escapa da maquinação, do fazer programado. Após a Bienal os teares serão enviados para o Centro Cultural Savannah Centre for Contemporary Art dirgido pelo artista, num contínuo intuito de democratização da arte e da integração dos seus fluxos em escalas globais.



No site https://contextile.pt/2022/ dá pra ter acesso a todo o catálogo além de vídeos e fotos da bienal. Bom proveito!




Sobre a autora: Thais Mol é bacharel em Comunicação Social, pós-graduada em Moda e Cinema Documentário, trabalha como artista visual e gestora cultural. Dirige vídeos de dança, produz festivais de arte e cultura e coordena iniciativas têxteis como instalações, projetos sociais e vivências do tecer através do Confio Atelier. Atualmente reside em Brumadinho – MG


278 visualizações0 comentário


Na Índia, a linha como metáfora era utilizada nos textos filosóficos e sagrados para falar sobre Rta, termo em sânscrito que significa “verdade” ou “ordem” cósmica. Para os indianos, a poética do tecido traz em si a possibilidade transformadora e a força latente do que é mutável, um padrão inerente à própria vida.


A arte tradicional indiana possui potencial terapêutico, reflexivo e de cura. O realizar com as mãos, em sua essência, é mais do que uma forma de fazer coisas: implica diretamente na construção de si e do entorno. O tecer, a roda de fiar, a linha e a agulha são convites para processos de autoconsciência e resiliência.


No início de 2019, conheci o trabalho de Priya Ravish Mehra na Bienal Internacional de Arte Kochi-Muziris, em Kochin, na Índia. Encantei-me com a estética dos seus experimentos em papel, linha e tecido. Os pontos de cerzido, ao invés de esconder, exaltavam as marcas e desgastes na matéria. Foi também o meu primeiro contato com a palavra Rafoogari, uma técnica extremamente minuciosa de cerzido invisível.


Durante 15 anos a artista trabalhou com a comunidade Rafoogar de Najibadad, estado de Uttar Pradesh. A cidade, fundada no século 18, era o eixo comercial dos sofisticados tecidos produzidos na Kashemira, extremo norte do país. Os chamados Kani Shawls eram feitos em técnicas de tapeçaria usando um raro tipo de lã, com uma complexa combinação de cores e desenhos. Por ser um processo lento e artesanal, a produção utilizando meios tradicionais tornou-se inviável, diminuindo gradativamente a partir do final do século 19.


Não se sabe se os profissionais especializados na manutenção dos tecidos surgiram durante ou após esse período, quando as peças precisaram ser restauradas. O certo é que num contexto de mudança econômica e social, tornaram-se fundamentais para mantê-las vivas e em circulação.

Não é por acaso que os Rafoogars também são conhecidos como healers, ou seja, curadores.


Ainda hoje, após o período das monções, famílias indianas repetem anualmente o ritual de retirar seus xales dos armários, examiná-los cuidadosamente e aguardar o Rafoogar para os reparos necessários. Alguns desses tecidos tem mais de 300 anos e são cuidados por uma mesma linhagem de artesãos. A excelência de um profissional é medida conforme a sua capacidade de ocultar a ruptura no tecido, através da invisibilidade dos pontos que camuflam o dano. A grande ironia é que, ao buscar a perfeição no invisível, eles próprios tornaram-se ocultos.


Em um de seus textos, Priya afirma que ao iniciar sua pesquisa, não encontrou sequer

uma menção aos Rafoogars nos registros da história das narrativas têxteis. Eles passaram

a refletir a essência e natureza de sua técnica.


Assim como em outros ofícios, o saber é passado de geração para geração, mas a falta de reconhecimento e a baixa remuneração tem mudado o tecido social da comunidade Rafoogar. Sobretudo os jovens já não se interessam mais em manter a tradição.


Priya faleceu no ano de 2018, tendo enfrentado ao longo de 12 anos um câncer. Durante sua pesquisa, o ato de cerzir tornou-se uma metáfora ressonante à própria necessidade de cura: “invocar ‘reparo’ como uma forma vital de autoconsciência; e afirmar simbolicamente

o lugar, o significado e o ato de consertar o tecido de qualquer vida, bem como a vida de qualquer tecido”. Conforme sua experiência “qualquer aparente interrupção no ritmo do tecido pessoal é simplesmente outra afirmação do continuum universal e sem costuras, do Rta. Não somos nem mais nem menos que novelos transitórios e mutáveis na trama cósmica, infinita, imaculada, imperecível”.

A história do cerzido é tão antiga quanto o próprio tecido e talvez, à primeira vista, pareça um assunto ordinário demais para ser elaborado. Mas um fio possui uma resiliência inestimável. É através dele que a vida se prolonga.







Acima um Rafoogar

cerzindo e, ao lado, um

exemplo do resultado

de seu trabalho.

362 visualizações0 comentário

A designer Julia Vidal acredita na roupa como veículo de comunicação e educação decolonial


Há quase duas décadas, a educadora de moda decolonial Julia Vidal vem contando histórias através de suas coleções. Julia Vidal: Etnias Culturais, sua marca, produz desfiles, estampas e figurinos pluriculturais para teatro e televisão.


Autora de dois livros, O africano que existe em nós, brasileiros: Moda e Design afro-brasileiros e Quintal Étnico: Cores e Vibrações afro-brasileiras, ela tem como propósito a valorização da diversidade cultural brasileira e acredita no tecido como um veículo de comunicação.


Com uma trajetória marcada por um encontro frutífero, apesar de não planejado, com a moda, a “bapaioca”, filha de uma artista plástica baiana e um sociólogo carioca de origem paraense (como ela mesma se define), diz se ver como todos os brasileiros, “uma mistura de etnias”.


Formada em design industrial, Julia há alguns anos utiliza roupa e moda como ferramenta de educação e, este ano, lançou a Ewa Poranga, primeira escola de moda pluricultural que oferece cursos, imersões, vivências, mentorias e consultorias sobre os diversos saberes e fazeres dos povos originários.


A escola, cujos saberes se dão sob a docência de profissionais negros e indígenas, priorizando o ensino plural, é mais um dos desdobramentos da carreira desta mulher potente, com quem batemos um papo:


Urdume: Julia, você tem uma trajetória profissional moldada por sua experiência familiar. Pode nos contar um pouco sobre isso?

Julia Vidal: A família da minha mãe é baiana e todo o meu desenvolvimento humano esteve relacionado com vivências e referências estéticas de Salvador. Quando eu era pequena, meu prêmio era ir para lá, porque no Rio de Janeiro eu me sentia muito fora do sistema. Era bolsista de um colégio com pessoas majoritariamente brancas e vivia fazendo esforço para me encaixar. A Bahia era meu mundo paralelo, um lugar onde eu não tinha compromissos, por isso, meu imaginário foi permeado pelas imagens daquele lugar: as baianas, suas indumentárias, seus bordados. Eu jurava que aos 18 anos me mudaria de vez para lá.


Urdume: Mas você não se mudou.

Julia Vidal: Não, entrei na faculdade de desenho industrial e tentei entregar o que esperavam de mim. Só que já no fim, pensei: “eu já fiz tudo que me disseram para fazer, agora vou fazer alguma coisa que tenha a ver comigo”. Então mergulhei em leituras sobre a cultura afro-brasileira buscando a minha identidade, as minhas raízes. Naquele momento eu fiz um recorte para o meu trabalho de conclusão de curso: estudar as etnias que vieram da África para o Brasil, como as referências desses povos chegaram aqui, e de que forma elas se transformaram. Meu projeto final da universidade se chama “O africano que existe em nós brasileiros”, e depois tornou-se um livro. Mas até hoje eu não fui à África, porque o meu lugar é de quem estuda a história brasileira e se preocupa com o hibridismo e riqueza cultural dos povos, valorizo aquilo que é nosso.


Urdume: O que é “nosso”?

Julia Vidal: A constituição da cultura brasileira é cruel e bem-sucedida no seu objetivo de apagamento. Nós todos compartilhamos esse traço de ser brasileiro: ser de quase lugar nenhum. Nós não pertencemos à África, nós não pertencemos à Europa, e não valorizamos as nossas identidades e recriações. Então esse olhar para fora, seja para Europa, ou seja para a África, precisa ser no sentido da gente mapear as etnias, os costumes e as culturas, para entender como isso se dá no Brasil. Eu acredito que eu venho desenvolvendo um trabalho de afirmação da identidade brasileira, mas no sentido de enriquecimento, para que a gente consiga dar nome às coisas. Entender como as coisas chegam aqui e, a partir de uma re-existência, passam por um ciclo de morte para surgir em um novo ciclo de vida. O que era na África não é mais o que é no Brasil. Quando a cultura afro-brasileira se faz aqui, ela se faz com uma nova identidade, porque ela vai se misturar com tudo, assim como a cultura europeia e indígena, que não será mais a mesma que era em Pindorama [Nome dado ao Brasil pelos indígenas antes da colonização].


Urdume: E qual o papel do design neste

processo?

Julia Vidal: O design para mim é uma ferramenta de desvendar essas histórias. Uma forma de entender que um desenho não é simplesmente um símbolo, algo bonitinho. Nele está implícito toda uma forma de ver o mundo, perpetuar memórias e tradições, e isso é o que eu chamo, ao longo da minha jornada acadêmica, de tecnologia ancestral. A gente pode transmitir conhecimento através de diferentes ferramentas. Na perspectiva dos povos originários - tanto indígenas, quanto africanos - esses desenhos, grafismos eram escritos. Então eu tento trazer a importância da fala através do imagético, e como isso é transmitido por meio dos tecidos. O tecido é um suporte para contação de histórias, uma forma da gente se libertar e entender que o mundo pode ser visto de diferentes perspectivas e suas representações podem ser transmitidas por diferentes veículos.


Urdume: Foi este entendimento do tecido como um veículo de comunicação que te levou ao mundo da moda?

Julia Vidal: Eu brinco que a moda me escolheu, porque quando me formei, em 2004, eu não era do mercado, trabalhava em uma agência de publicidade. Ainda assim, eu me preocupava com a superficialidade com que a moda lidaria com o boom de estamparia étnica que surgia na época. Um tempo depois, minha avó paterna, da Ilha de Marajó, foi diagnosticada com Alzheimer e, em um determinado momento, passou a falar das suas memórias de infância. Ao sentar ao lado dela, naquela condição, tive contato com uma parte da vida dela que ainda não conhecia. Um imaginário conectado à natureza, que abriu um portal dentro de mim e me conectou com a minha raiz indígena. Ali, percebi que além da minha raiz africana eu tinha todo um referencial imagético gigantesco no Brasil. Naquela época, depois do pedido de muitos amigos para que eu fizesse roupas, eu já tinha criado uma marca de moda, a Balaco moda afro-brasileira, que depois das histórias recebidas pela minha avó, passou a se chamar Julia Vidal Etnias, para que pudesse abranger toda diversidade brasileira.


Urdume: De que forma você foi criando a identidade da sua marca?

Julia Vidal: Por muito tempo eu olhei as etnias pela janela, não sabia como exatamente trazer isso pra moda. Fiz um mestrado em relações étnicas raciais, pós-graduação em estamparia, tudo para compreender o tecido como uma forma de linguagem. Na minha pesquisa de mestrado eu queria pesquisar os têxteis indígenas, mas a academia não está preparada para avaliar estudos deste tipo, então fui para os africanos, continuei nessa trajetória. Mas acho que o divisor de água aconteceu quando completei 10 anos de marca e lancei meu primeiro livro, que traz o conteúdo que eu comecei a desenvolver na faculdade junto com o meu conteúdo de pesquisa em moda. Ali o mercado já compreendia a necessidade de construir esses conteúdos e o livro me abriu portas para o mundo da educação. Não que eu já não fizesse isso na moda, minhas coleções sempre contaram histórias nas modelagens e estamparia, mas a partir dali, fui para a sala de aula.


Urdume: De que forma você trabalha com educação?

Julia Vidal: Preparando o mercado consumidor. Enxergo a roupa como design de conexão. Desde o lançamento do livro, eu passei a dar workshops, palestras, ensinar na academia. Isso não estava no meu radar, mas sempre digo que eu tenho uma sensibilidade para perceber os caminhos que estão se abrindo pra mim. Para isso, precisei quebrar muitas barreiras que eu tinha com a educação. Tive que criar o meu próprio sistema de dar aula, porque eu não podia reproduzir aquele lugar no qual eu me sentia oprimida. Foi depois de encontrar a literatura da bell hooks que eu comecei a criar uma linguagem própria, um formato diferenciado, e muito instintivo, para passar o que eu sabia. Depois, estudando as metodologias de ensino de universidades indígenas e afro-centradas, descobri que minha intuição vinha toda dali, da minha vida prática.


Urdume: Julia, você comentou que trabalha com o hibridismo entre os povos, aquilo que é genuinamente brasileiro, como lidar com a questão da apropriação cultural neste contexto?

Julia Vidal: A apropriação cultural passa pela manutenção do poder. A primeira pergunta que precisamos nos fazer é se estamos sendo ferramentas de reforço de uma hegemonia, ou estamos conseguindo mudar o que nos é imposto. Devemos nos perguntar: “de que forma eu, a partir do meu lugar social, da minha cor de pele, na região onde estou inserida, posso me posicionar para não ser fantoche do sistema?” Porque quando uma pessoa compra algo ela passa a fazer parte de uma causa, ela precisa ser um agente de transformação e consciência. Quando falamos do turbante, que é muito citado como exemplo, o importante é a gente não esquecer que algumas pessoas negras morrem por usá-los. Lembro que quando eu comecei minha marca, tinha poucos clientes negros que consumiam, justamente porque ela tem muita identidade. Então muitas vezes eles não queriam ter o fator étnico-racial mais exposto em suas roupas, porque isso já trazia sofrimento em sua aparência física. Uma roupa étnica é um reforço de identidades que vêm sendo marginalizadas ao longo de séculos. Por isso, prezo tanto pela educação. Por fazer esse ecossistema de educação se expandir. Como consumidor tenho que entender que eu uso porque acho bonito, mas também porque tem este ou aquele significado. A roupa muitas vezes passa pela beleza, mas não passa pela riqueza. Quando falamos de turbante, há determinados tipos de amarração que são do sagrado, por isso, é importante perguntar. Não temos obrigação de saber, mas temos obrigação de saber que a gente vem de uma sociedade racista, entender nossa ignorância e buscar informação. Usar com consciência, passando isso adiante. Isso é ser antirracista, consumir de pessoas negras e passar a diante suas histórias, construindo pontes.


Urdume: Você acabou de defender seu mestrado em relações étnico-raciais, pode nos contar um pouco sobre ele?

Julia Vidal: O título da minha dissertação é “Tecidos que falam e viajam - têxteis africanos enquanto veículos de identidades híbridas revalorizadas no Brasil”. Estudar o tecido é estudar como nós somos. Na minha pesquisa eu analiso a trajetória de dois tecidos africanos e suas transformações ao passarem por outras regiões. O primeiro é o ‘Ofi’, que sai da Nigéria, passa por diversos trânsitos, até chegar no Brasil, onde foi revalorizado e recriado como Pano da costa. Já o segundo é ‘Wax’, que nasce do capital intelectual africano, tem seu repertório apropriado pelas indústrias têxteis europeias, e passa a ser produzido na China.


Urdume: No caso do ‘Ofi’ a transformação em ‘Pano da costa’ no Brasil se deu de forma lenta e feita por africanos e seus descendentes, mas no caso do ‘Wax’ a situação parece muito mais complexa e predatória. Como a identidade africana pode se manter nestes tecidos?

Julia Vidal: É um jogo que se estabelece nessa relação africana com o oriente, onde cada tecido vai sendo produzido em larga escala e atingindo a relação do local com o global o tempo inteiro. Neste jogo é possível observar os códigos usados pelo mercado europeu/chinês para retornar aos países africanos, que possuem um mercado consumidor riquíssimo e educado para valorizar um têxtil de grande qualidade. Na cultura africana, os tecidos têm linhagem ancestral, são herdados, usados para sepultamentos e movimentam milhões. As pessoas valorizam as estampas e tecnologias dos tecidos, ele é veículo, fala, traz diversas funções e é consagrado ao longo da vida da pessoa. O tecido sai da indústria têxtil europeia morto, mas quando vai entrar no mercado consumidor africano ele ganha nome, ganha história, se não ele não é vendido por lá. O tecido de hibisco é um tecido de dote, por exemplo, uma harmonia para o casamento, as informações estão todas no tecido, e esse sentido só é criado no continente, por isso a indústria chinesa não entraria neste espaço se não existissem as mulheres africanas comerciantes que vão dar sentido para que ele possa existir ali. Por isso, a identidade permanece neste jogo, um depende do outro para existir.


Urdume: Você acaba de lançar a Ewa Poranga, primeira escola de moda pluricultural, qual a proposta desta iniciativa?

Julia Vidal: Como consequência das experiências e vivências educativas com a minha empresa Julia Vidal: Etnias Culturais, nós criamos a Ewa Poranga, que surge como uma escola de conteúdos inovadores sobre a moda, design e arte sob perspectiva endógena e pluricultural, daqueles que vivem e falam a partir de suas culturas, de suas experiências no saber/fazer na diversidade de visões de mundo. Nossas atividades acontecem em formato EAD com encontros híbridos, estimulando as conexões Sul-Sul entre saberes Afro-ameríndios

125 visualizações0 comentário
bottom of page