Brasileiras que vivem na Europa e suas iniciativas de moda e reciclagem
Simone Simonato trabalha com duas empresas sociais de Bangladesh.
Aliar a reciclagem à moda, propor uma moda ética e sustentável e unir o ativismo ao trabalho. Estas são marcas comuns às iniciativas da paranaense Simone Simonato, 35 anos, que vive em Berlim, e da paulistana Márcia de Carvalho, 46 anos, radicada em Paris há 25 anos.
Simone é designer de moda e fundadora da Sica, marca-projeto que utiliza resíduos têxteis para confeccionar bolsas e tapetes exclusivos, duráveis e reciclados. Márcia é estilista e criadora da Chaussettes Orphelines (“meias órfãs”, em português), associação-butique que coleta meias sem pares e as transforma nos fios 100% reciclados que são utilizados nas suas coleções.
Há ainda mais em comum, a participação e valorização de outras mulheres no processo de produção de suas coleções. A Sica trabalha com duas empresas sociais de Bangladesh, que reúnem artesãs e tecelãs que produzem a partir de suas técnicas manuais tradicionais. Já a Chaussettes Orphelines conta com a parceria de dois centros públicos de alojamento e reinserção social, próximos de Paris, que acolhem principalmente mulheres em situação de vulnerabilidade social.
A URDUME conversou com Simone e Márcia para saber sobre suas ideias, histórias e técnicas.
Orgulhosamente feito em Bangladesh
Em Bangladesh, produção de tapetes tecidos na tradicional técnica Satranji, compreende de 6 a 10 mulheres da comunidade. Foto: Divulgação SICA
No início do seu mestrado em Sustentabilidade na Moda, em Berlim, em 2013, Simone desenvolveu a linha “orgulhosamente feita em Bangladesh” da Sica.
A ideia veio da “revolta” em relação ao funcionamento da fast fashion (“moda rápida”, modo de produção e consumo rápido que gera grande impacto negativo ambiental e social) e da sugestão de um professor, que comentou sobre a indústria da moda em Bangladesh. Há mais de 7 mil fábricas têxteis no país, que é o segundo maior exportador mundial de vestuário, depois da China. E cerca de 8% da produção acaba sendo desperdiçada.
Diante desse cenário até então desconhecido, Simone viu a possibilidade de desenvolver um
projeto de moda sustentável. Na sua primeira ida ao país, em 2013, firmou parceria para a produção artesanal de bolsas. Dois anos depois, veio a parceria para a produção dos tapetes, tecidos na técnica tradicional de tear Satranji.
As empresas sociais compram resíduos de malha das fábricas na capital Daca e levam para suas pequenas unidades de produção. A confecção das bolsas – do corte à costura, passando pelo tear, forro e acabamentos – envolve cerca de 15 mulheres, contratadas da empresa social. Já a produção dos tapetes compreende de 6 a 10 mulheres, que trabalham em seus teares na própria comunidade, junto aos afazeres do dia a dia e recebem por produção, o que contribui para uma renda extra para as famílias.
O “redesign” do que já foi produzido e o design das novas peças é criado por Simone, que se inspira nas técnicas tradicionais manuais bengalis. Além do olhar do design, ela contribui com a visão empreendedora. Simone conta que o objetivo é dar suporte às artesãs, ajudando com design, com o processo de produção e com a comercialização dos produtos. “A ideia é dar visibilidade para essas artesãs. Na hora de vender esses produtos, eu quero que as pessoas sintam essa interação que eu tenho com elas, essa alegria que a gente tem de estar fazendo uma coisa nova, de estar mudando alguma coisa dentro desse mundo da moda, que é tão complexo e tão difícil de mudar”, diz Simone, em entrevista[1] disponível no Vimeo*.
Desde a primeira viagem, praticamente todo ano Simone passa alguns meses em Bangladesh. A cada estadia, entende um pouco mais sobre a cultura do país, conhece novos fornecedores, estreita relações com as artesãs com quem trabalha e com elas desenvolve formas de aprimorar as técnicas, materiais e processos.
Na relação com as artesãs, a questão da comunicação é um desafio. Como a grande maioria delas não fala inglês, Simone precisa sempre de um tradutor e também está estudando a língua bengali. Assim como as línguas, as culturas são muito distintas. “Somos de universos muito diferentes. Bangladesh é um país muçulmano. Lá elas casam cedo, há casamentos arranjados, elas têm filho cedo. Toda vez que eu ia elas perguntavam: ‘mas você não é casada, não tem filhos?’”, conta Simone rindo. Ela reconhece a importância do encontro e das trocas, em meio às diferenças. “Elas ficam muito contentes em ver que alguém que está indo produzir com elas está realmente interessado em viver um tempo ali, trocar, interagir com a comunidade. Pra mim é muito importante estar ali pra entender o que elas precisam e dar voz pra elas. Sinto, também, que tem muito carinho por estarmos trocando conhecimento, nos conhecendo, conhecendo novos mundos, eu e elas”.
Nova vida para as meias órfãs
Márcia de Carvalho criou a associação Chaussettes Orphelines, que transforma meias sem pares em fios. Nesse processo, 1 quilo de meias se transforma em 8 quilos de fio, aproximadamente. Foto: Divulgação Chaussetes Orphelines
De Berlim, com Simone, partimos para Paris, conhecer a iniciativa de Márcia. Há 12 anos, arrumando as gavetas de meias de seus dois filhos, ela se deparou com “um fenômeno mundial”: as meias sem par. Aliando, então, seu já consistente trabalho como estilista, a formação em sociologia, a inspiração da mãe empreendedora da costura e do pai “reciclador vanguardista”, ela criou a associação Chaussettes Orphelines.
Seu objetivo principal é sensibilizar para a importância da redução dos resíduos têxteis, por meio da coleta e reciclagem de meias. A produção de um par de meias de algodão consome 1.350 litros de água e 90% das meias gastas ou sem par são jogadas no lixo.
No início da associação, as meias eram recortadas e reutilizadas na criação de trabalhos artísticos e de vestimentas. Com o aumento da coleta de meias, Márcia viu a necessidade e possibilidade de inovar. Durante 3 anos, em parceria com uma fiação francesa, ela se dedicou a desenvolver um processo de reciclagem industrial das meias para transformá-las em fios.
Nesse processo, 1 quilo de meias se transforma em 1 quilo de fio, aproximadamente, e as meias esportivas geram, em sua maioria, fios claros com mais algodão, enquanto as meias escuras geram fios mais ricos em lã. Com os fios, as peças criadas por Márcia são tricotadas à máquina em ateliês franceses parceiros.
Os recursos obtidos com as vendas bancam as despesas da associação, que conta com uma equipe de 8 pessoas, e são reinvestidos no processo de sensibilização, coleta, triagem e reciclagem.
A associação tem também uma atuação social. Além da parceria com um dos centros de alojamento e reinserção social, onde as meias são triadas por cor, a Chaussettes Orphelines oferece oficinas semanais de artesanato têxtil para mulheres do outro centro público parceiro e também para crianças do bairro popular da Goutte d’Or - onde fica sua sede, que funciona também como ateliê e butique.
Peças produzidas nessas oficinas fazem parte do desfile solidário anual organizado há 4 anos pela associação, compondo a coleção criada por Márcia. O desfile, que conta com o apoio de empresas parceiras, é uma oportunidade de dar visibilidade à questão da reciclagem, além de ser a chance das mulheres dos centros parceiros, que prestigiam o desfile, terem seu trabalho e suas criações valorizados.
Márcia acredita que o processo de reciclagem proposto pela Chaussettes Orphelines traz, para essas mulheres, a possibilidade de “transformar o inútil em útil e bonito”. Márcia conta que divide com elas “essa relação com a transformação, com a beleza, a alegria de realizar, de criar. Várias mulheres que participam me falaram como elas estavam felizes de realizar coisas que elas nunca tinham feito”. Para ela, “esses momentos de encontro humano fazem parte dos alimentos não materiais que são tão fundamentais pro nosso bem-estar”.
As práticas de Simone e Márcia (que recebeu a insígnia de Cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito da França, por seu trabalho como estilista engajada) e de tantas outras empreendedoras que questionam a indústria da moda - a 2ª mais poluente do mundo - nos mostram como a moda ética pode promover encontros que transformam os resíduos e a realidade.
Para conhecer mais sobre o projeto assista o vídeo: vimeo.com/211683054
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