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Técnica e cosmotécnica - artes têxteis indígenas




Kene Huni Kuin
Kene Huni Kuin

A tecnologia não é neutra e nem universal. O que costumamos chamar de técnica não é só um conjunto de ferramentas para facilitar a vida, mas um jeito de enxergar o mundo. Isso é o que nos diz o filósofo Yuk Hui, que propõe o conceito de cosmotécnica para explicar como cada cultura tem suas próprias formar de desenvolver e lidar com a tecnologia. O autor rechaça a ideia de uma única história da tecnologia e aposta na ideia de tecnodiversidades.


“Recolocar a questão da tecnologia é recusar esse futuro tecnológico homogêneo que nos é apresentado como a única opção. ” Yuk Hui

Na tradição europeia, a tecnologia sempre esteve ligada à noção de falta – uma necessidade de compensar as fragilidades humanas, como mostra o mito de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses para que os homens sobrevivam. Mas essa é apenas uma das histórias da tecnologia, para muitos povos indígenas, a técnica não nasce da carência, mas da potência. Entre os Huni Kuin (povo indígena que habita a fronteira brasileira-peruana da Amazônia), por exemplo, os grafismos não são uma invenção humana, mas um presente da Jiboia Yube, que ensinou às mulheres a arte de tecer e pintar a pele. Os Kenes, padrões geométricos que aparecem nos tecidos, nos corpos e nos objetos, não são apenas enfeites. Eles comunicam, protegem, organizam o mundo. Segundo a antropóloga Els Lagrou, os Kenes são um meio de ligação entre os lados separados dos mundos perceptíveis.




A arte indígena não compartilha a obsessão ocidental pela autoria individual, a criação não é uma assinatura, mas um fluxo. Entre os Huni Kuin, a mestra na arte da tecelagem não é uma artista, mas uma guardiã do conhecimento, chamada ainbu keneya, a “mulher com desenhos”. A tecelagem, para ela, não é apenas um trabalho manual, mas um ato de continuidade, um prolongamento de saberes ancestrais. O mesmo acontece com a arte do grafismo, que nos corpos pintados, nas cestarias e nos tecidos, não apenas representa, mas agencia relações entre humanos, espíritos e a natureza.


“sobre os corpos onde o desenho adere como uma segunda pele e sobre as mentes dos que viajam a mundos imaginários em sonhos e visões, onde a visualização do desenho funciona como mapa, permitindo aos bedu yuxin, alma do olho, de homens e de mulheres encontrar a morada dos yuxibu, donos dos desenhos” Els Lagrou

Os Navajo/Diné também entendem a tecelagem como algo muito maior do que uma técnica. Para eles, o tear representa o próprio universo: a barra superior é o céu, a inferior é a terra e os fios são o trovão, conectando tudo. Desde pequenas, as meninas Navajo têm suas mãos passadas por uma teia de aranha para se conectarem a esse conhecimento. A Mulher Aranha, figura mítica do povo, foi quem ensinou as primeiras mulheres a fiar e a criar padrões. O tecido, assim como os Kenes dos Huni Kuin, não é apenas uma peça visual – mas uma forma de entender e organizar a vida.


No Brasil, essa lógica aparece no resgate do Manto Tupinambá. No século XVII, esses mantos foram levados para a Europa como troféus coloniais, e por muito tempo acreditou-se que a técnica de confecção havia desaparecido. Mas os Tupinambá nunca esqueceram. Célia Tupinambá, artista e pesquisadora, recriou o manto a partir de um processo coletivo, envolvendo toda a comunidade na coleta de penas, na fiação do algodão e no trançado. “O manto vem desvendando segredos”, ela diz. O manto, mais do que uma peça de roupa, é um símbolo de retomada.


Essa capacidade de absorver, transformar e ressignificar se vê também na fiação de miçangas, presente em diversas etnias. As miçangas chegaram ao Brasil com os colonizadores, mas os indígenas rapidamente as incorporaram em seus próprios sistemas de ornamentação e cosmologia. Lagrou chama isso de “pacificação estética”: o que vem de fora não é simplesmente aceito, mas transformado.


Já os Diné, nos Estados Unidos, passaram por algo parecido. Durante A Longa Caminhada (1863-1866), foram expulsos de suas terras e perderam suas ovelhas, fonte essencial de lã. Sem material para tecer, começaram a desfazer cobertores industriais distribuídos pelo governo americano e a refazê-los em padrões próprios, criando o chamado Germantown Revival. Um gesto de resistência, um jeito de transformar a imposição colonial em algo próprio.

Uma relação entre tradição e reinvenção que não ficou no passado, Melissa Cody, tecelã Diné de quarta geração, mistura padrões tradicionais com códigos de computação, criando tecidos que são, ao mesmo tempo, preservação e inovação.



artista diné/navajo Melissa Cody
artista diné/navajo Melissa Cody


A ideia de técnica como algo separado da vida é uma invenção recente. Para os povos indígenas, criar não é sobre romper com o passado, mas sobre entrelaçar tempos, tecendo conexões entre o que já foi, o que é e o que ainda está por vir. Algo no qual eu também acredito.


Este texto, e os próximos que virão, faz parte da minha pesquisa sobre os têxteis e a busca por entender os caminhos do sensível. Até quarta que vem.

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