Projeto Ponto Firme leva afeto, estética e design para dentro da prisão, promovendo transformação social a partir do crochê.
Por Estefania Lima - entrevista publicada na Urdume #03
Nascido no Recife, o estilista e educador Gustavo Silvestre se lembra de observar as mulheres de sua família reunindo-se para abrir suas caixinhas para crochetar, “eram verdadeiros tesouros que elas tiravam dali - linhas, fios e agulhas”. Um costume que ele observava de longe, já que sempre escutou que crochê era coisa de mulher. Algo que, décadas mais tarde, Gustavo mostraria não ser verdade. O estilista não só se tornaria um exímio crocheteiro, como criaria o Ponto Firme, projeto no qual ensina crochê em um dos ambientes mais machistas da sociedade, a cadeia.
Segundo levantamento de 2019, do site G1, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com prisões que estão quase 70% acima de sua capacidade, e totalizam 750 mil presos, se forem contabilizados os que estão em regime aberto e os detidos em carceragens da polícia. Em três anos, data do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do governo, o país recebeu mais 61 mil presos para as suas celas já superlotadas. Uma maioria de pessoas negras, pobres (61% dos presidiários possuem esse perfil, enquanto apenas 53,63% da população brasileira têm essa característica), e desescolarizadas (75% desses presos não possuem ensino fundamental completo).
É com essa realidade que Gustavo Silvestre se depara semanalmente, desde que começou o projeto Ponto Firme. Desde 2015, o estilista oferece, voluntariamente, capacitação técnica em crochê para detentos da Penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos - SP.
De lá pra cá, Gustavo, que já havia encontrado no crochê uma forma de ressignificar seu trabalho com a moda, descobriu que a técnica poderia ser também uma ferramenta de educação. Em seu , o estilista olha para essa ferida social que é o encarceramento, revelando a humanidade que resiste dentro de um sistema criado para vigiar e punir. Em quatro anos de projeto, a iniciativa que se destaca por seu valor estético, foi tema de diversas matérias jornalísticas, e já virou exposição de arte, desfiles na Semana de Moda de São Paulo (SPFW) e até mobiliário de uma loja em Nova York.
Para saber mais sobre a origem desse projeto e os caminhos que ele ainda pode seguir, conversamos com Gustavo Silvestre, confira a entrevista a seguir:
Revista URDUME. Gustavo, de onde vem a sua relação com crochê?
Gustavo Silvestre: Eu sou de Recife e todas as mulheres da minha família faziam crochê. O tempo todo elas se juntavam para crochetar, e eu ficava só de olho, observando elas abrindo as suas caixinhas e tirarem de lá seus tesouros - linhas, fios e agulhas. Mas tudo de longe, porque se eu chegasse perto já ouvia um: “sai pra lá, que isso não é coisa de menino”. Anos se passaram e me tornei tornei estilista, e mesmo antes de saber fazer crochê, minhas peças já tinham relação com o fazer manual.
URDUME. E quando você aprendeu a fazer crochê?
GS: Tudo começou quando uns empresários viram a minha marca, adoraram, mas disseram que era muito cara e que eu precisava produzir na China. Me organizei, fiz uma viagem para lá, e voltei arrasado, com crises sobre autenticidade e consumo, porque eu passei a perceber que alguma coisa na conta do fast fashion não fechava. Então assim que eu voltei, encerrei minha marca, e comecei a dialogar com a Chiara Gadaleta [estilista referência em cadeia de moda sustentável] sobre nosso papel, como pessoas do mundo da moda, nesse sistema. Foi quando comecei a trabalhar com ela no projeto “Mãos do meu Brasil”, no qual mapeamos iniciativas artesanais pelo país, e durante essas viagens eu a via crochetar. Notando o meu interesse, ela me presenteou com uma aula na Novelaria [Knit café localizado em Pinheiros - São Paulo], e daí em diante, minha vida mudou.
URDUME. Foi o seu momento de reconexão com a moda?
GS: Sim, porque toda a minha crise quando eu encerrei minha marca foi: “O que eu faço com a minha experiência na moda? Jogo tudo fora?” E com o crochê entendi que eu não precisava abandonar tudo, eu podia aproveitar o conhecimento que eu já tinha. O que foi ótimo, porque hoje o crochê que eu faço chama atenção não só porque sou um homem fazendo crochê, mas, principalmente, porque uso técnicas de modelagem e o crochê como um tecido.
URDUME. E o projeto Ponto Firme nasceu desse reencontro?
GS: Na verdade a ideia surgiu com um senhor de uma pastoral, uma pessoa que faz um trabalho muito importante dentro da penitenciária, e que apareceu na Novelaria procurando alguém que pudesse dar aulas de aprofundamento para homens que já faziam crochê na cadeia. Como eu fui o primeiro homem a fazer aula na Novelaria, me procuraram com essa proposta. Eu, que estava em um momento em que achava os meus problemas muito grandes, e já vinha conversando com a minha terapeuta sobre a possibilidade de fazer trabalho voluntário, achei que aquela era a oportunidade. Tudo aconteceu muito rápido. Em uma semana preparei e apresentei o projeto, na semana seguinte já estava lá.
URDUME. Como foi essa proposta inicial?
GS. Comecei despretensioso, não me achava professor. Eu já dava workshops, cursinhos, e achei que fosse ser assim, uns quatro, cinco encontros. Muitos amigos me perguntavam se eu não tinha medo, diziam que eles [os alunos] podiam me furar com uma agulha, me enforcar com a linha, e eu só respondia: “Estou indo de coração aberto levar algo que foi bom pra minha vida, ponto”, Por intuição, já no primeiro dia de aula decidi trazê-los para perto pelo viés afetivo. Perguntei: “Quem aqui tem alguém na família que faz crochê?” Todo mundo respondeu que sim. Pensei, então começamos bem, todos temos algo em comum, e contei a minha história. Começamos com 11 alunos, e hoje temos 28, desde então 120 já passaram pela turma.
URDUME. E quando o Ponto Firme começou a ganhar as ruas?
GS. Desde o primeiro ano. Já em 2015 participamos da campanha do agasalho da Prefeitura de São Paulo fazendo peças para moradores de rua. No ano seguinte, fizemos uma exposição de tapeçarias na Novelaria. Mas o ponto de virada mesmo aconteceu em 2017, quando começaram aparecer as primeiras roupas durante as aulas. Eu levava revistas, já tinha ensinado eles a lerem receitas, e eles começaram a se aventurar nesse universo. Mesmo não querendo voltar ao mundo das passarelas, sabia que não haveria outro modo de mostrar aquelas criações se não com um desfile, então fomos atrás dessa produção. Pensei em algumas possibilidades para que essa ideia acontecesse, mas resolvi ir até o Paulo Borges, [idealizador e diretor criativo do São Paulo Fashion Week], que para minha alegria foi muito receptivo à proposta, e pedir o espaço. Foi uma ação estratégica, porque é esse o tipo de visibilidade que precisamos trazer para uma população que está à margem da margem. Eles, e a família deles, precisam ver que o que fazem têm valor, é bonito. Então, já que estávamos ali, projetando um desfile, precisávamos chamar atenção para a causa. O primeiro desfile aconteceu ano passado e o segundo esse ano. Na verdade já foram realizados quatro desfiles, porque foram dois no SPFW e outros dois na penitenciária, para que os meninos pudessem assistir o desfile de suas criações.
URDUME. Os desfiles geraram muita visibilidade para o projeto, aconteceram outros desdobramentos depois deles?
GS. Muita coisa aconteceu depois disso, até porque eles começaram a sair [da penitenciária]. Hoje já temos cinco deles aqui fora, e agora o processo é outro, outros contextos, e eu me esforço semanalmente para encontrar trabalho para eles, porque a concorrência com o crime é pesada. Um deles, o Thiago, participou da SP Arte, performando comigo, a convite da Galeria Vermelho. E sabe, o Thiago foi o cara que, no primeiro dia de aula, me perguntou o que já haviam feito em crochê que estivesse no Guiness Book. Uma pergunta que mexeu comigo, porque atrás dela tinha um desejo de ser grande na vida. Acho que foi naquele momento que eu entendi que não seriam só quatro encontros, que eu tinha um compromisso com aquelas pessoas. Ele não entrou no Guiness Book, mas criou uma ponte de crochê que o levou da cadeia ao SP Arte. Nem todos se tornarão artistas, mas me alegra saber que esse pode ser um caminho, como aconteceu com um outro aluno meu, que usou o dinheiro que recebeu para fazer um provador de crochê para uma loja no Soho, em NY, para pagar a autoescola e tirar sua carteira de habilitação.
URDUME. Que compromisso foi esse que você entendeu ter com os seus alunos?
GS. O de educador, uma ficha que caiu quando ganhei de presente de um deles algo que eles chamam de artesanato de cadeia. Uma caneta toda trabalhada em um trançado têxtil lindo. De um lado estava escrito Gustavo, do outro professor. Esse foi o meu canudo.
URDUME. E depois que você se deu conta que era professor, o que mudou?
GS. Eu me dei conta da importância do acompanhamento. O trabalho não se encerra na técnica, ele começa por ela. Começa no momento em que eu inicio o meu trabalho usando como matéria-prima aquilo que eles já sabem fazer. Um processo assim é muito diferente de um workshop de poucas horas em que você tem um produto final para entregar.Sabe o professor que pega o lápis com a gente? O nosso lápis é agulha e o caderno é a linha. Porque quando você se senta do lado de outro homem, em um universo machista e homofóbico como a cadeia, e consegue se conectar, você está trabalhando na formação de um ser humano.
URDUME. O que você quer dizer com educação de base?
G.S. Por exemplo, nos primeiros contatos que tive com eles, eles não pediam nada, saiam pegando os materiais que eu levava na sacola. Mas eles não faziam isso porque iam me roubar, mas porque ninguém os ensinou é preciso pedir para mexer nas coisas do outro. Então preciso voltar dez casinhas, pedir para todo mundo se sente e espere até que eu distribua os materiais. Por isso, meu trabalho passa por essa educação de convivência, de formação humana de adultos. Claro, tenho meus mestres, como o Paulo Freire e a pedagogia Waldorf, que veio a partir da Nina, sobre a importância dos trabalhos manuais para o desenvolvimento humano [Gustavo acabou de encerrar uma pós-graduação com a Doutora em Educação Nina Veiga].
URDUME. Você passou a estudar Paulo Freire por causa do Ponto Firme?
GS. Na verdade ele faz parte da minha vida desde sempre. Minha mãe era educadora, trabalhava com educação especial em Recife, então ele sempre foi assunto lá em casa. Essa coisa de utilizar aquilo que já vem com os alunos, sabe? Porque não adianta eu chegar e perguntar se eles conhecem lã Merino [lã tida como uma das mais nobres] se a realidade dele é o barbante. Eu não desenvolvo esse projeto para usar aquelas pessoas como estatística, “ x número de presidiários que aprenderam a fazer o paninho de prato para vender no sinal”. Nada contra aprender a fazer o pano de prato, ele pode até quebrar um galho, mas não sai daquilo. E existem muitos projetos desse tipo, que querem manter a pessoa no mesmo lugar de sempre, o de subalterno. Eu não quero isso, e acho que Paulo Freire me ensina isso, oferecer base para que a pessoa desenvolva o máximo de potência que ela já tem.
URDUME. Como você torna esse trabalho qualitativo?
GS. Se eu tenho algo para dar, eu dou de todo coração e com toda a minha intensidade. Para mim, da porta pra dentro, não é mais cadeia. Eu não quero saber o que eles fizeram para estarem ali. Claro, quando eles desejam me contar, por um processo natural de confiança, tudo bem, mas se não, não. Esse cuidado eu tenho desde o começo, a preocupação de criar um espaço de afeto. Então veja, eu pego um bando de marmanjos, cheio de couraças, que sofrem desde a infância e começo por onde? Pelo afeto. Quando preparo o material individualmente, respeitando a potência de cada um, eles sabem que são lembrados, que têm importância.
URDUME. Como é a sua relação com eles?
GS. Eu tenho 28 amigos encarcerados, porque você começa a construir uma relação de amizade. Eu peço muito para que eles não voltem para o crime. Eu não tenho nenhum parente naquele inferno, graças a Deus, e nem imagino a dor das vítimas que sofreram violência, mas a gente precisa respirar fundo e olhar para a vida que essas pessoas tiveram e as razões para terem escolhido o crime. Não podemos ignorá-las. O meu convite é que a sociedade olhe pra isso, pra esse “lixão humano” que é a cadeia, onde depositamos os problemas que não queremos resolver como sociedade. Como diz Drauzio Varella, a penitenciária só serve para punir, ninguém sai melhor dali. Precisamos olhar para isso.
Revista URDUME: Seu trabalho tem se destacado por unir educação e prisão (dois símbolos de disciplina institucional da sociedade de controle), afeto, estética e design. Qual o seu entendimento sobre isso?
GS. Sei que o Ponto Firme conquistou um espaço importantíssimo, que está quebrando um padrão ao levar designer e estética para dentro da cadeia, algo que nunca havia acontecido. Muita gente acha que é só “crochê”, mas não, é uma revolução manual silenciosa. Além disso, sei que o projeto dá voz a eles. Esse ano, por exemplo, ao nos preparamos para o desfile, ouvi deles que a mensagem que gostariam de passar é a de ainda são seres humanos. Uma mensagem muito forte. Tenho percebido também o quanto está tudo bem enquanto eu sou o bonzinho que ajuda os “miseráveis”, mas o quanto o projeto passa a incomodar a partir do momento que um deles chega ao patamar de artista. Eu sei que tem muita gente ali [na prisão] com quem a vida foi dura demais e talvez essas pessoas nunca consigam mudar, mas os alunos do projeto, esses estão comprometidos, e querem de alguma maneira fazer diferente, só não sabem como. E a partir dessa brecha, que eu tento contribuir. O que eu sei é que quanto menos educação, mais criminalidade. É uma equação sem erro. Nesse sentido eu vou compondo, fazendo o que posso. Sigo por dentro, porque de fora não se muda nada. Gosto de acreditar na sementinha que cria raízes no concreto, e quando você vê, ela derrubou um muro.
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