Todo ser vivo passa por transformações no percurso da vida. Aliás, nascer, crescer, reproduzir-se e morrer são verbos que caracterizam a própria definição de ser vivo, pressupondo profundas modificações nos corpos. Não são etapas simples, especialmente para os seres humanos, corpos dotados de desejos que muitas vezes se contrapõem às etapas desse desenvolvimento conceitual. Mais especificamente ainda, o corpo feminino abriga o processo delicado e complexo de geração de outro ser vivo na reprodução, garantia de perpetração da espécie. Indivíduos complexos, nós, mulheres, nem sempre encaramos com tranquilidade o processo evolutivo da vida em suas definições puramente biológicas. Temos sonhos para além da maternidade, temos conflitos na construção e exercício de nossas identidades em um contexto mais amplo, na sociedade, e mais restrito, em nossas funções de mães, geradoras de novas vidas. Muitas vezes nos rebelamos, esperneamos, não aceitamos estereótipos forjados historicamente por sociedades em que as posições de tomadas de decisões são ocupadas por homens.
Desde meados do século vinte, vimos assistindo a mulheres ocuparem, no mundo ocidental, lentamente, espaços de fala que eram apenas ocupados por homens. Com a possibilidade de acesso à escolarização e a métodos de controle de natalidade, as mulheres começaram a descolar sua atuação da estrita manutenção do lar e dos cuidados com a prole. Paulatinamente, surgem narrativas que relatam as necessidades e desejos femininos para além dos papeis atribuídos pela sociedade patriarcal. Simone de Beauvoir pôde contestar o determinismo biológico nos papeis femininos; Virginia Woolf pôde defender que, se as mulheres tivessem direito a seu espaço, poderiam produzir arte como os homens; Frida Kalo pôde pintar seu desejo de liberdade e Vivienne Westwood pôde subverter amarras estéticas expressando a função política da moda. Simone, Virginia, Frida e Vivienne conseguiram, não sem grande esforço, ocupar seu locus enunciativo e se fizeram percebidas. Produziram filosofia e arte, uma fabulação criadora que perdura além de seus corpos, ressignificando identidades tradicionalmente presas a padrões patriarcais. Elas contribuem, até hoje, para a produção de significados de inúmeras Simones, Virginias, Fridas e Viviennes que não se tornaram imortalizadas com seus nomes e sobrenomes.
Partindo do pressuposto de que para nós, mulheres cotidianas, é possível também ressignificar nossas identidades, como isso pode ser feito? Para discutir o papel da mulher comum na ressignificação de sua história, vou contar um pouquinho da minha própria vida e esclarecer meu local de fala nesta conversa. Sou uma mulher de mais de cinquenta anos, recém aposentada da carreira de professora e pesquisadora universitária, esposa, mãe de três filhos jovens adultos. Como a maioria das mulheres brasileiras, casei e tive filhos. Constituir uma família, ter um companheiro de vida, cuidar da minha casa, educar meus filhos, compunham meu desejo de vida adulta desde menina. Identidade de esposa e mãe, claro, moldada pela sociedade em que vivo, pelos ideais recebidos através da educação e do exemplo dos homens e das mulheres de minha família. Ocupando uma posição privilegiada nos estratos dessas expectativas, consegui uma vida conjugal marcada pelo companheirismo e três filhos encaminhados para suas vidas autônomas. Nada disso foi sem esforço; meu, de minha família e das mulheres e homens que vieram antes de mim, mas não tivemos maiores percalços ou mesmo tragédias familiares que impedissem esse percurso. Ao mesmo tempo, construí uma carreira acadêmica, chegando aos níveis mais altos de formação pós-graduada e contribuindo para o desenvolvimento da minha área de atuação. A construção da identidade de mulher profissional deu trabalho, demandou esforço, mas não me lembro de ter sido, de forma pessoal, impedida de exercer minha profissão ou expressar minhas ideias por ser mulher. Ou seja, sou duplamente privilegiada em um país onde a violência doméstica ceifa a vida de grande parte das mulheres, onde muitas não têm condições de alimentar ou educar seus filhos com dignidade e a maioria não consegue inserção no mercado de trabalho por preconceito ou por não ter acesso à educação mínima.
Minha condição de privilégio, que reconheço, não significa que minha vida, como de outras mulheres em situação semelhante à minha, tenha sido fácil. Viver bem em família e exercer uma profissão demandam esforço constante, revendo prioridades e metas com dedicação, negociação, firmeza e ternura. A busca constante de conciliação entre as identidades de mulher esposa-mãe e mulher profissional trouxe conflitos, dúvidas, momentos de profundo cansaço, mas sem episódios de violência.
As atividades manuais têxteis, como para grande parte das mulheres da minha geração, fizeram parte da minha formação. Uns pontinhos básicos de costura, bordado e crochê me foram passados por minha avó e minha mãe. Diferentemente delas, entretanto, linhas e agulhas faziam parte apenas das minhas horas vagas. Minha mãe, antes de mim, para conseguir completar a educação básica, precisou aprender a costurar e provar para seus pais que o estudo não atrapalharia o desempenho das atividades domésticas, essas sim, função de uma mulher. Minha mãe escondia livros entre os panos das costuras; eu, por outro lado, bordava enquanto ouvia fitas com gravações de aulas de inglês. Aquilo que para minha mãe foi a ocupação primeira era, para mim, secundária. Assim, em vários momentos, as atividades manuais estiveram em contraponto com minhas atividades intelectuais, trazendo equilíbrio.
Nesse percurso, três peças de crochê passaram para minha história de vida. Engravidei de meu primeiro filho durante o doutorado. A alegria de estar a caminho de ser mãe trouxe uma vitalidade nova para aquela fase tão pesada de estudos. Depois que a criança nasceu, vi que cuidar de um filho na barriga é muito mais tranquilo do que nos braços e as coisas foram se complicando. Como se não bastassem as dificuldades, engravidei novamente e tive o segundo filho ainda sem concluir o doutorado. Tinha certeza de que, agora, não ia dar conta. Com dois bebês as ideias ficaram nebulosas, o corpo cansado de gestar, amamentar e embalar não conseguia pensar tão bem. Atinar com as frases certas, a argumentação convincente para aquele capítulo da tese parecia algo inatingível. Escolhi um fio escuro e um motivo de quadros repetidos para que não sujasse com facilidade e fosse possível transportar, sem necessidade de um espaço sossegado (não, Virginia, não podia me dar ao luxo de ter um quarto todo meu), enquanto uma blusa de crochê foi surgindo. Eu me sentia improdutiva intelectualmente, os capítulos da tese não saíam, estava me vendo como o próprio bagaço da laranja e precisava me espremer para tirar algum suco. O corpo estava cansado, improdutivo, a mente percebia-se incapaz e minava, ainda mais, as forças necessárias para continuar. Projeção de emoções conflitantes, os papeis de mãe e profissional não conseguiam produzir forças físicas e emoções positivas, combustíveis necessários naquele momento. Didi-Huberman (2016), retomando Henri Bergson, considera as emoções
como gestos ativos [...], gestos que, aliás, reafirmam muito bem o próprio sentido da palavra: uma emoção não seria uma e-moção, quer dizer seria uma e-moção, quer dizer, uma moção, um movimento que consiste em nos pôr para fora (e-, ex) de nós mesmos? Mas se a emoção é um movimento, ela é, portanto, uma ação: algo como um gesto ao mesmo tempo exterior e interior, pois, quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se agita, e o nosso corpo faz uma série de coisas que nem sequer imaginamos.
Foi assim que fiz a blusa. Enquanto tecia, de forma padronizada, os quadrados de crochê, as ideias também iam se organizando. As emoções negativas de fracasso, exaustão, desesperança, foram se movendo para longe, expurgados, dando lugar à emoção da esperança de que seria possível vencer. O verde que, a princípio for escolhido pela tonalidade escura, mais resistente à visibilidade de sujeira, transformou-se em um verde esperançoso. Ver a peça pronta e poder vesti-la contribuiu para que eu acreditasse em minha força, para que ainda encontrasse fôlego para continuar produzindo. Defendi a tese.
Depois de algum tempo, com as duas crianças um pouco maiores, queria expressar a alegria da maternidade. Escolhi um fio azul como fundo e crochetei outra blusa com margaridas brancas de miolo amarelo. A mãe e profissional estava viva, feliz, com trabalho e vida familiar plenos. Usei essa blusa na festinha de aniversário de nosso segundo filho, em meio aos balões e brigadeiros e à alegria infantil de novas emoções que vêm com novas descobertas. Esse momento conversa com Coccia (2010, p. 93), quando afirma que
[a] natureza vive, antes de tudo, como roupa. Ou então: é especialmente na roupa, no nosso devir imagem, que experimentamos pela primeira vez a possibilidade de existir fora de nós, para além de nós mesmos. A vida sensível é essa eternidade difusa e impessoal, indiferente à morte e ao nascimento, o plano no qual podemos nascer e renascer continuamente, sem jamais pressupor um passado ou uma história, sem ter a necessidade de nos transformarmos.
Uma roupa tecida e usada na leveza de momentos alegres como crianças e profícuos como a realização plena da maternidade e a exuberância da realização profissional projeta essa imagem de quem a usa para fora de si mesma. A leveza e a alegria das flores tecidas em amarelo em branco, em contraste com o azul forte, os pontos de crochê abertos, permitindo a circulação de ar e a visão parcial do corpo que veste a peça tornam sensível para os outros corpos, através do olhar e do toque no abraço, a efusão do momento festivo. A roupa adquire, enquanto veste o corpo, seu ânimo, sua alma.
A vida continuou, veio mais um filho, o trabalho e as funções de mãe apertaram. Os têxteis cederam lugar aos livros, às reuniões de trabalho e das escolas das crianças. Depois, com os dois filhos mais velhos já estudando fora, ao final de três décadas de trabalho, completei o tempo para requerer aposentadoria. Os planos eram pedir a aposentadoria e continuar trabalhando como pesquisadora e professora de pós-graduação, atividade que sempre me encheu de orgulho e prazer. Torcendo sonhos de muitas pessoas pelo mundo todo, veio junto a pandemia de covid-19. Como se não bastasse, descobrimos que minha mãe estava doente e precisava de ajuda. A mulher profissional e mãe ativa que eu era se tornou, da noite para o dia, uma senhora aposentada, sem os filhos por perto, marido forçosamente à distância, cuidando da própria mãe. Ela, que sempre havia colocado a família e os cuidados da casa antes de qualquer coisa, agora precisava desesperadamente de mim. As identidades, por um momento, embaralharam-se. Mas como a vida grita suas necessidades, pontas perdidas e fios dispersos são encontrados e unidos para determinar novos percursos.
Enquanto acompanhava minha mãe em exames, consultas, tratamentos, encontrei os fios restantes das duas blusas anteriores e com eles comecei a tecer uma saia. Fios azul, verde e amarelo foram dando novos sentidos para a vida de uma mulher que tinha que se renovar. O corpo não é mais o mesmo. O quadril, depois de três gestações, não tem a mesma medida de antes, as mãos não têm a mesma agilidade, os olhos precisam de mais esforço. Mas a adaptação é possível, a metamorfose é necessária para a manutenção da vida. Os fios da vida da profissional e da mãe ganham novas significações em um tempo em que quase ninguém consegue ser quem gostaria de ser. Paradoxalmente, a pandemia nos aproximou e nos afastou dos outros e de nós mesmos, nos obrigou, a todos, a assumir papeis não previstos. A vida nos confronta com situações às quais somos obrigados a nos adaptar para nossa própria sobrevivência, muitas vezes com violência e dor. Para Coccia (2020) as metamorfoses são frequentemente tão dolorosas porque
[s]ão os dias onde tudo se parece com violência: aqueles em que os golpes que infligimos a nós mesmos parecem mais duros que os que o mundo pode nos enviar. Nós somos retidos no casulo para produzir a infância. Esquecemos o mundo e passamos horas a fazer novamente o passado na inocência. O que, do lado de fora, parece ser rejeição e violência, por dentro é apenas imaginação criativa para um futuro impensável e inimaginável.
No momento da mudança, em que o processo da metamorfose ocorre, o futuro não nos pertence nem em planejamento, já que o curso que considerávamos natural e previsível é interrompido violentamente. A evolução de minhas identidades de esposa, mãe e mulher profissional foram repentinamente transmudadas em um processo violento do qual eu não tinha o menor controle. Ao mesmo tempo em que meu corpo mudava drasticamente com a chegada da fase madura, as expectativas e obrigações também foram impostas por uma situação de doença tanto global, como a pandemia, quando pessoal, a doença de minha mãe. Nesse momento, a retomada dos fios verde, esperançoso, e azul e amarelo, que me levavam à minha melhor fase produtiva, foram combinados para produzir, agora, uma saia. A saia acolhe o quadril, região feminina onde outras vidas são geradas e que mais sofre transformações nesse processo. Pensar sobre meu quadril, meu útero, enquanto cuidava de minha mãe, minha progenitora, agora vítima de um câncer de ovários, me trazia muita dor, mas paradoxalmente, alívio. Nada seria como antes, a metamorfose não permite repetição, mas existe a esperança de uma continuidade de vida. Durante o processo, violento, aprendemos a fazer o que tem que ser feito. Ponto. Depois de desmanchar várias vezes, terminei a saia. Cuidei de minha mãe, que me transmitiu o amor pela tecitura, com todas as minhas forças e acredito que ela se sentiu amada no percurso final de sua vida.
Posso dizer que produzi arte ao tecer essas três peças? Não. O que se conserva na arte, para Deleuze e Gattari (1992, pág. 213), é
A coisa, ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos.
Os perceptos não mais serão percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e de afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si (itálicos e genérico masculino dos autores).
As sensações intrínsecas às três peças têxteis podem sobreviver apenas em parte independentemente dos sentidos que eu atribuo a elas como criadora. A textura dos fios pode transmitir a percepção do aconchego, as cores podem, em nossa cultura ocidental, brasileira, transmitir alegria ou tristeza, mas os sentidos atribuídos por mim na feitura das peças não sobreviveriam sem o acompanhamento da narrativa de minha história. As peças não tratam de diferentes fases, com seus conflitos e soluções, de mulheres de uma determinada geração de uma forma original ou independente de quem teceu as peças ao ponto de configurar obras de arte. Nem mesmo que a polissemia da arte seja considerada, nem mesmo que partamos do princípio de que uma obra de arte não precisa carregar o mesmo significado para todos aqueles que a contemplam. A plurissignificância, aliás, faz com que a arte seja até mais duradoura, já que será viva enquanto se abrir a possíveis significados diferentes.
Não, não sou uma artista. Sou uma mulher que busca ressignificar sua vida em diferentes momentos, que procura combinar e recombinar seus fios, suas cores, criando novas possibilidades de significados. Eventualmente, mulheres assim podem vir a produzir arte. Inexoravelmente, somos todas mulheres que procuramos vida.
REFERÊNCIAS
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Tradução Diego Cervelin. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2010.
- - -. Metamorfoses. Tradução Madeleine Deschamps. Rio de Janeiro. Dantes Editora, 2020.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Tradução Bento Prado jr. E Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? Tradução Cecília Ciscato. Ed. 34., 2016
Vera Helena Gomes Wielewicki é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Especialista em Literatura Brasileira (UEL - Londrina)
Mestre em Letras - Língua Inglesa e Literaturas (UFSC - Florianópolis)
Doutora e Pós-doutora em Letras - Língua Inglesa e Literaturas (USP - São Paulo).
Artigos publicados, pesquisas e orientações em literatura e formação de professores, multimodalidades, multiletramentos e educação inclusiva
Crocheteira e curiosa sobre as artes têxteis
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