Projeto Mãostiqueiras, em Campos do Jordão (SP), promove a valorização de práticas artesanais e a reutilização de insumos naturais ao adotar modelo de economia circular
Contaminação do solo, da água e do ar, extinção de espécies e desvalorização da diversidade. Estes são apenas alguns dos aspectos que caracterizam os grandes desafios contemporâneos. Mais do que pontos isolados, essas questões têm se apresentado como reflexos do pensamento linear presente na forma como produzimos valor econômico e nos relacionamos com o planeta. Um modelo restrito à perspectiva de mercado, que utiliza critérios de mensuração de resultados quantitativos, e opera seus processos produtivos a partir de uma lógica de extração-manufatura-descarte.
Se opondo a essa lógica nasce a economia circular, uma alternativa ao modelo linear, que busca redefinir a noção de crescimento, focando no benefício integral da sociedade. Este modelo é baseado na preservação e otimização dos recursos naturais e no fomento à eficácia dos processos.
Na lógica circular, a noção de posse dá lugar a de uso, fortalecendo modelos de compartilhamento, e busca-se a potencialização de uma inteligência criativa, regenerativa e harmônica com a natureza. Segundo Carla Tennenbaum e Lea Gejer, co-fundadoras da Ideia Circular, uma iniciativa que visa disseminar conhecimento sobre o tema, "economia circular é a visão de um sistema industrial e econômico que é projetado pra ser regenerativo e eliminar o conceito de lixo, mantendo os recursos em circulação com o maior valor possível".
Uma prática desafiadora, mas necessária para o setor têxtil, que além de basear sua atuação em estímulos exacerbados para o consumo, causa sérios prejuízos ao meio ambiente (segundo a ONU, 17 a 20% da poluição da água industrial vem de tingimento e tratamento têxtil).
Nesse sentido, destacam-se as iniciativas que já nascem no modelo de economia circular, como o Mãostiqueiras, fundado por Juliana Müller Bastos, em Campos do Jordão. Um projeto que tem como missão o resgate e a valorização da cultura da lã natural, que a artesã acredita ter sido afetada pela produção das grandes indústrias. “Por conta do mercado das fibras sintéticas, o desinteresse pela lã natural cresceu ao longo dos últimos anos. Nós nascemos da constatação do absurdo de que a indústria tem preferido fabricar uma fibra sintética, com altíssimo impacto ambiental, ao invés de utilizar uma fibra de fonte renovável, que a natureza nos dá, de graça, e que tem sido jogada no lixo”, afirma.
Uma história que começou quando Juliana, que trabalhava com feltragem de lã, foi convidada para palestrar sobre o material em um evento. Lá, foi abordada por um senhor que lhe contou que criava ovelhas, mas que por não ter o que fazer com a lã, costumava jogar o material no lixo após a tosquia anual. Além disso, no mesmo evento, a artesã descobriu o interesse de pessoas que desejavam comprar lãs naturais, mas não as encontravam no mercado.
Foi então que, vislumbrando uma oportunidade, Juliana começou a pesquisar sobre a criação de ovelhas na Serra da Mantiqueira, e constatar que havia um enorme desperdício de insumo, resolveu criar o projeto: “Fiz um levantamento e descobri que na região existiam mais de mil ovelhas e todos os criadores jogavam o pêlo tosquiado fora. E ainda enquanto estava me capacitando sobre o tema, comecei a receber doações dessa lã. Depois disso, desenhei um projeto e o inscrevi em uma lei de incentivo, com a qual fomos beneficiados. O projeto começou em 2017 e desde 2018 se mantém com recursos próprios”, conta.
Além de aproveitar a lã que antes ia para o lixo, resgatando e valorizando os saberes ancestrais, o projeto também promove a capacitação de mulheres da região. Elas aprendem a fazer o beneficiamento, fiação e tingimento natural da lã. Dessa forma, geram renda com a produção de peças de crochê, tricô, tear e feltragem, que são vendidas no mesmo espaço onde o projeto é realizado, local que ainda oferece oficinas educativas abertas ao público.
As oficinas são parte da função educacional do projeto, já que Juliana acredita que conhecer o processo de produção do fio seja fundamental para a sua valorização: “Fazemos questão de apresentar todo o processo de produção a cada visitante que chega aqui. Os animais, o fuso, a roca, a carda, é isso que faz com que cada centímetro de fio produzido seja valorizado”, afirma. Um pilar do Maõstiqueiras que promete ganhar ainda mais força é a abertura de um museu: “nosso próximo passo para disseminar essa história milenar é a criação de um museu da lã, que já está em andamento”, conta.
No entanto, não é só a preocupação com o manejo da lã e a valorização cultural e social que tornam o Mãostiqueiras um projeto de economia circular. A atenção com o manejo dos resíduos produzidos e o cuidado com a natureza também são característicos do projeto. ”Temos um grande respeito por essa fibra e por tudo o que ela nos propicia. Aproveitamos toda a lã que recebemos, mesmo a mais curta, usando-as para enchimentos de almofadas, por exemplo. Na lavagem da lã, buscamos aproveitar a água da chuva e da máquina de lavar. A água da primeira lavagem, inclusive, volta para o pasto como adubo carregando todos os nutrientes que estavam no pêlo da ovelha. Também valorizamos a cor natural da lã, mas quando optamos pelo tingimento fazemos da forma mais natural possível, prezando por plantas nativas da região. Nosso processo é tão artesanal que quase não utilizamos energia elétrica. Curtimos mesmo o trabalho mais lento, valorizando cada etapa que faz o fio acontecer” descreve Juliana
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