
Os fios aparecem em diversas mitologias e histórias ao redor do mundo, frequentemente associados ao destino, ao tempo e à criação. Em diferentes culturas, a metáfora do fio é utilizada para representar tanto a continuidade da existência quanto a finitude da vida. Tecelãs divinas, fios invisíveis e tramas complexas ilustram o modo como a humanidade interpreta seu próprio percurso.
Na mitologia grega, as Moiras eram três irmãs responsáveis pelo controle do destino dos mortais e até mesmo dos deuses. Cloto fiava o fio da vida no nascimento, Láquesis determinava seu comprimento e Átropos cortava-o no momento da morte. Essa crença refletia a ideia de que a existência estava pré-determinada e que nem mesmo os deuses podiam interferir em seu desdobramento. Na tradição romana, essas figuras eram conhecidas como Parcas e possuíam funções semelhantes.
Na mitologia nórdica, as Nornas também desempenhavam papel equivalente. Urðr, Verðandi e Skuld habitavam as raízes da árvore do mundo, Yggdrasil, e teciam a trama do destino não apenas dos homens, mas também dos deuses. O destino, nesse contexto, era visto como um elemento inalterável, cujo curso não poderia ser modificado. Diferente das Moiras, as Nornas estavam associadas não apenas à vida e à morte, mas também à manutenção da ordem cósmica.
Em a "Odisseia", épico grego de autoria de Homero, encontramos a história de Penélope, a esposa de Ulisses. Conhecida por sua astúcia ao criar uma estratagema utilizando seu tear. Para adiar a decisão de se casar novamente com um dos muitos pretendentes que invadiam sua casa durante a longa ausência de Ulisses, ela propôs confeccionar um sudário para seu sogro, Laertes, prometendo que o completaria em um determinado período. No entanto, durante a noite, ela desmanchava secretamente o trabalho feito durante o dia, frustrando os planos dos pretendentes e mantendo a sua independência.
Já no mito de Ariadne, o fio aparece como um elemento essencial tanto para a orientação quanto para a transformação. Ariadne, filha do rei Minos de Creta, apaixona-se por Teseu, o herói ateniense enviado para enfrentar o Minotauro no labirinto projetado por Dédalo. Para garantir que ele conseguisse escapar após derrotar a criatura, ela lhe entrega um novelo, permitindo que ele marque seu caminho e retorne em segurança. Em troca, Ariadne exige que Teseu a leve para Atenas como sua esposa. No entanto, após a fuga bem-sucedida, Teseu abandona Ariadne na ilha de Naxos.
Esse abandono marca uma virada crucial no mito. Segundo a interpretação do filósofo Gilles Deleuze no artigo "Mistério de Ariadne segundo Nietzsche" , Teseu representa uma figura reativa, alguém que se define pela negação e pelo cumprimento de deveres e valores rígidos. Sua missão é matar o monstro e escapar do labirinto, mas ele permanece prisioneiro de uma lógica que o obriga a seguir um caminho de retidão, sem questionar seus próprios atos. Ariadne, inicialmente subordinada a essa dinâmica, vê sua trajetória alterada quando encontra Dioniso. Diferente de Teseu, Dioniso simboliza a afirmação da vida em sua multiplicidade e transformação constante.
"Ao aceitar essa nova perspectiva, Ariadne recupera seu fio - sua vida - e deixa de ser uma vítima do abandono, para se torna uma figura ativa, reinventando sua própria trajetória."

Para Deleuze, o verdadeiro dilema de Ariadne não é ser abandonada, mas sim escolher entre permanecer no ressentimento ou abraçar a afirmação dionisíaca. Teseu derrota o Minotauro, mas não compreende o verdadeiro labirinto em que está preso: o de sua própria negação ("o homem sublime vence os monstros e expõe os enigmas, mas ignora o monstro e o enigma que ele próprio é"). Dioniso, ao contrário, oferece a Ariadne a possibilidade de um novo começo, onde a vida não precisa ser reduzida a um roteiro imposto por deveres e obrigações. Ao aceitar essa nova perspectiva, Ariadne recupera seu fio - sua vida - e deixa de ser uma vítima do abandono, para se torna uma figura ativa, reinventando sua própria trajetória.
Outro mito grego/romano que envolve a tecelagem é o de Aracne. Segundo a lenda, Aracne era uma exímia tecelã que desafiou a deusa Atena para uma competição. Sua tapeçaria era melhor que de Atena e retratava as falhas e abusos dos deuses, o que enfureceu a Deusa. Como punição, Aracne foi transformada em aranha e condenada a tecer para sempre.
Para além da Grécia, o fio também aparece em mitologias indígenas norte-americanas e lendas africanas. A Spider Woman (Mulher-Aranha), venerada pelos Hopis e Navajos, é uma criadora do universo. Em algumas versões do mito, ela tece a realidade com seus próprios pensamentos, dando forma a tudo o que existe. Já em uma lenda africana, Anansi, o Homem-Aranha, é um personagem esperto que usa fios e teias para manipular situações a seu favor. Suas histórias cheias de engenhosidade e astúcia podem ser mais poderosos que a força física.
Na Ásia, temos ainda mais exemplos, o "Fio Vermelho do Destino" que conecta pessoas que estão destinadas a se encontrar, na mitologia chinesa. E no Japão, a deusa Amaterasu, ligada ao sol, é associada ao mito da tecelagem celestial, responsável pela harmonia do cosmos.
Apenas uma amostra de antigas histórias que revelam a linguagem do fio como uma metáfora ancestral e profundamente feminina (independente do gênero), e que simboliza a própria essência da vida. Em cada uma delas, o fio reflete a dualidade entre continuidade e ruptura, construção e destruição, expressando a tessitura complexa das forças individuais e cósmicas que regem nossa existência. Essas histórias, que enxergam a vida como uma trama intricada, são também um testemunho da capacidade feminina de dar forma ao caos e ao destino, articulando, por meio de um gesto sutil, a liberdade que convive com o fatalismo.
Mas é claro, que o fio não se restringe aos contos originários, mas segue vivo em nosso imaginário. No entanto, isso é papo para um próximo texto. Até lá!
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. OBRAS ESCOLHIDAS volume 1
SHAKESPEARE, W. Macbeth. In: Shakespeare – tragédias, vol. I. Trad. de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
TURNER, J. Macbeth. Philadelphia: Open University,1992
Stallybrass, Peter. 'Macbeth and Witchcraft', Macbeth. New Casebooks. Ed. Alan Sinfield . London: Macmillan, 1992
HOMERO. Odisséia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003
NASONE, Publio Ovidio. Metamorfosi. A cura de Piero Bernardini Marzolla, Torino, Enaudi, 1994
DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Porto: Rés.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Pensamento, São Paulo, 2007
ATWOOD, Margaret. A odisseia de Penélope, Rocco, 2020.
MACHADO, A. M. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001
Machado, A. M. (2003). O Tao da teia: sobre textos e têxteis . Estudos Avançados, 17(49), 173-196.
Machado, A. M. Ponto a Ponto. Companhia das Letrinhas, 2006
Comments