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BRUXARIA TÊXTIL

Atualizado: 1 de mar. de 2021

Tricoteira e crocheteira desde a infância, Cristiane Bertoluci é uma das pioneiras no resgate das manualidades no Brasil, acredita no autoconhecimento pelas mãos e na magia que se manifesta por meio dos fios


Por Estefania Lima - entrevista publicada na Revista Urdume #02 [Mai/2019]

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Fotos: divulgação Cris Bertoluci

Gaúcha, de Caxias do Sul, Cristiane Bertoluci cresceu rodeada pelo artesanato têxtil. Aos oito anos, já era tricoteira, inspirada pela mãe, que fazia tricô para vender na loja que teve por 32 anos, pela a avô que crochetava e pela vizinha, que era da costura. Ótima aluna em matemática, Cris gostava de pensar na engenharia necessária para construção de tudo, e o tricô e o crochê ofereciam muitas possibilidades nesse sentido. “Aprontadeira”, como ela se define ao falar de sua infância, alternava o tempo entre jogar futebol na rua e tricotar roupas para suas bonecas ou fazer barrados de pano com crochê.


Uma infância que já indicava o futuro da artista. Ainda em Caxias do Sul, cursou moda e começou a estagiar em uma empresa que revendia máquinas industriais de tricô do Japão, a Shima Seiki. Ali, Cristiane aprendeu sobre máquinas, programação e confecção em malharia retilínea, dando vazão a seu gosto matemático. Em 2007, mudou-se para São Paulo, onde decidiu que iria dedicar-se à carreira de estilista. Em 2010, na Inglaterra, fez o curso de Criação em Tricô no extinto Atelier Knit-1, em Brighton, e já em seu retorno, em 2011, não teve dúvidas: passou a dedicar-se integralmente ao fazer manual, ajudando a encabeçar um movimento importante e ainda tímido de retorno às manualidades no Brasil.


URDUME. Você é uma das artesãs pioneiras na revitalização das técnicas manuais têxteis na última década. O que te moveu nesse e como entende a sua contribuição para o retorno aos fios e agulhas?

Cristiane Bertoluci.O curso em Brighton e a visita aos Arquivos de Bauhaus [escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda na Alemanha] foram as principais inspirações. Eu tinha saído de uma empresa de Fast Fashion, onde o trabalho era só de cópia/cola. Estávamos longe da confecção, manufatura, criação. E, quando cheguei em Brighton, eu tinha aulas de oito horas de criação, com pensamentos que eu nunca vi em nenhum outro curso. Tudo era muito novo. Cheguei ao Brasil igual criança quando volta de férias e queria contar tudo para todo mundo. Foi essa sede que me deu força para começar. No início não foi simples, mas depois da abertura da Novelaria [Cristiane dá aula aula no Knit Café desde a inauguração em 2011] e da capa da revista da Folha de S. Paulo, no mesmo ano, tudo foi acontecendo. Então, acho que contribuí com o conhecimento que trouxe de lá, de criar, de sermos mais destemidos. O universo manual é muito amplo, todo mundo pode se encontrar nele. E o que mais procuro fazer é incentivar meus alunos a se encontrarem, criarem a sua identidade e seu universo.



URDUME. Qual a diferença entre o tricô e crochê das nossas avós para o dos nossos dias?

Cris. Acho que o meio de divulgação e, principalmente, a informação. Nossas avós só tinham acesso a três ou quatro revistas por ano e à meia dúzia de fios. Nós temos até receitas russas! Um dos meus livros favoritos, Making is Connecting [Fazer é conectar, em tradução livre], de David Gauntlet, fala de como a internet é um impulsionador do manual por estarmos vivendo a web 2.0. No início da internet éramos mais passivos, assim como nossas avós com revistas e a TV. Mas quando a internet começou a ficar mais interativa, em que qualquer um escreve, posta, recebe um comentário, publica um vídeo, nós ficamos mais curiosos e criamos comunidades em torno do que fazemos. Agora, a troca de informações globais e a busca pela criação são maiores.


URDUME. A indústria da moda desperdiça um caminhão de lixo têxtil por segundo. De que forma você acredita que o setor da moda possa contribuir para reduzir os danos que causa ao meio ambiente?

Cris. Parando de produzir hoje (risos). Acredito muito na reciclagem e no upcycling, porém ainda existe muito preconceito com relação a esses produtos, além disso, as indústrias ainda têm mais facilidade e acesso à matéria-prima virgem do que à reciclada. Temos que evoluir muito a cultura do reciclado, e a indústria precisa sair da sua zona de conforto na hora da produção. Só assim poderemos iniciar uma conversa sobre redução de danos.




URDUME. Como diminuir o consumo? Não estamos apenas trocando o consumo fast fashion pelo do slow fashion”? Como você vê as ações de greenwashing [ações de marketing para dar uma imagem ecologicamente responsável a produtos e organizações que não estão se preocupando com a causa]?

Cris. No Brasil, o consumidor não tem muito poder de escolha, pois o valor dos produtos pesa muito no orçamento. Por isso, acredito que essa responsabilidade seja da indústria. E as informações são ainda muito manipuladas e novas para que o consumidor seja capaz de saber sobre o que consome. Outro dia eu estava ouvindo o podcast novo da Marina Colerato, do Modefica, e da Fê Cortez, do Menos 1 Lixo, em que elas falavam que o governo vai isentar o ICMS de frutas e verduras embaladas. Ou seja, vai ser mais barato comprar aquelas verduras que vem embaladas do que as que escolhemos no mercado, sabe? Ao mesmo tempo, estamos falando em proibir canudos. Quer dizer, o governo tem uma ação boa de um lado e uma atitude péssima por outro. Claro que o consumidor também pode fazer sua parte, acho que estamos caminhando para uma maior consciência. Porém, acho errado acreditar que deve partir dele, uma vez que ele também é vítima de desinformações constantes. A indústria se baseia muito em greenwashing para vender produtos sustentáveis e existem dois problemas nisso: não adianta uma empresa vender um produto sustentável, mas continuar com 20 que são péssimos; e não adianta colocar “natural” ou “sustentável” na embalagem, mas seguir com os mesmos produtos.



URDUME. No seu Instagram, você descreve seu trabalho como Bruxaria Têxtil. O que isso quer dizer?

Cris. Quer dizer que pego um fio, uma agulha, faço uma magia e tchãrã!!! Trago sua blusa favorita em 2 dias! (risos) Vejo tudo que faço como mágico, até mesmo o caminho que percorri para chegar onde cheguei. Muitas coisas aconteceram que parecem ter dedo do outro mundo.

O manual nos aproxima a um lugar comum da “bruxaria”: o do autoconhecimento. Esse momento de pensar em si, de ter um tempo pra si, de estudar algo que está relacionado a si. Técnicas manuais têm a ver com gosto, com capacidade, com crescimento e aprendizado. Quando penso em bruxarias, penso em astrologia, tarot, numerologia… tudo que está relacionado ao autoconhecimento. E vejo uma relação grande entre uma coisa e outra.



URDUME. A bruxaria tem relação com o feminino dos fios?

Cris. Tem a ver com mulheres unindo seus conhecimentos tradicionais e populares, sim. Senta em uma roda de tricô que você vai ver, a troca é infinita. Ali tem uma união por um interesse comum, o que é muito amistoso e grandioso. Sempre falo que tenho alunas que, no Facebook, já teriam se matado, mas em aula elas se entendem, conversam e trocam muito. Sem falar que durante anos as mulheres só tiveram acesso ao manual como expressão.



URDUME. Como você se expressa por meio do que produz? O que os fios têm a dizer sobre você?

Cris. Eu me expresso matematicamente (risos). Eu adoro testar coisas novas, buscar soluções, encontrar novos caminhos. Jamais seria capaz de ter uma marca com 20 peças iguais, só de pensar em fazer três peças repetidas, isso já acaba comigo. Eu gosto da efemeridade dos fios, da ideia de que uma peça pode ser desfeita e outra pode surgir dela, gosto de pensar nisso como uma metáfora pra minha vida: já me fiz e refiz muitas vezes e espero me refazer muito pela vida.



URDUME. Você participa e ministra aulas em retiros que resgatam práticas ancestrais como a fiação, tingimento natural e a relação com a natureza. Qual a diferença de tricotar na cidade e no campo? O que muda no contato primário com o fio?

Cris. O principal é o tempo: o tempo é outro na natureza, imagina sem internet. O foco e a disposição para fazer são outros. E acho que a conexão entre as pessoas também é diferente, pois elas estão ali mais presentes e atentas. A natureza traz vários sentidos de volta, tudo fica diferente, do medo do escuro e dos barulhos na rua a apreciar um pôr do sol durante uma aula que acaba virando um ouro nas nossas vidas.



URDUME. Você também trabalha com TRICOaching, pode nos explicar como funciona?

Cris. TRICOaching é um evento criado por mim e pela coach Marisa Bussacos. Nos conhecemos há mais de 10 anos. A Marisa era dona do café Ekoa e, quando ela começou a trabalhar como coach, um dia lembrou do filme Colcha dos Retalhos e me ligou falando que queria fazer um trabalho com o assunto. É um dos trabalhos que mais tive gosto de desenvolver, pois traz um olhar completamente diferente para as técnicas manuais. Procuramos trabalhar com uma intenção nas conversas e nos pensamentos, tentando desenrolar nós internos e mudar a trama da vida, nem que seja um pouco e aos poucos, de pequeno em pequeno passo.



URDUME. O futuro é manual? Qual o equilíbrio entre o fazer com as mãos e a tecnologia?

Cris. O meu é! Gosto de acreditar que cada vez mais vamos construir nossos mundos, e o manual vai ser importante para isso. Acho que a tecnologia deveria começar a existir para o propósito que nós sempre acreditamos: para aliviar nosso trabalho, para que tenhamos mais tempo para nos dedicar a nós. Sempre lembro de um vídeo da Jout Jout em que ela e o Caio ficam falando sobre isso: em vez da tecnologia aliviar alguns trabalhos para que a gente tenha mais tempo, ela nos escravizou e acabamos trabalhando cada vez mais. Espero que a Inteligência Artificial venha exatamente para isso e não para nos sobrecarregar mais.



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