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A História Tecida à Mão: O Fio Invisível entre Gênero, Política e Identidade




Os têxteis sempre foram mais do que meros objetos utilitários. Bordados, rendas, tecidos e agulhas carregam consigo camadas de história, política e identidade, refletindo hierarquias sociais, questões de gênero e disputas de poder. No Brasil, a relação entre o trabalho manual têxtil e a sociedade é um reflexo do passado colonial, da dominação cultural europeia e da resistência silenciosa de mulheres e povos racializados.


Desde a colonização ibérica, o trabalho manual foi relegado a uma posição inferior. Aos homens livres, cabiam as atividades intelectuais e políticas; aos indígenas e negros escravizados, a lida com as mãos. Essa hierarquia racial e social não apenas marginalizou as práticas manuais, mas também apagou a cultura têxtil dos povos originários e africanos, impondo um modelo europeu de produção e estética.


"O bordado, então, não era apenas um passatempo, mas um instrumento de doutrinação, moldando a feminilidade dentro dos limites da domesticidade."

O século XIX trouxe um reforço dessa estrutura com a chegada da Missão Artística Francesa e a ascensão da cultura europeia como padrão de refinamento e civilidade. Surgiram escolas que ensinavam as meninas das elites a bordar, tocar piano e recitar poesias – habilidades que serviam para transformá-las em boas esposas e mães. O bordado, então, não era apenas um passatempo, mas um instrumento de doutrinação, moldando a feminilidade dentro dos limites da domesticidade.


Essa divisão também se manifestava dentro das próprias casas. Enquanto os homens ocupavam espaços como escritórios e mesas de trabalho que refletiam sua individualidade e status, as mulheres se confundiam com a própria casa. Suas produções têxteis, como rendas e toalhinhas, decoravam o lar, tornando-se quase uma extensão de seus corpos. O trabalho manual feminino era uma forma de invisibilização: criativo, mas não rentável; delicado, mas submisso.


Mas nem todas as mulheres aceitaram essa posição passivamente. Mulheres que ficaram conhecidas como negras de ganho, por exemplo, utilizavam suas habilidades têxteis para vender peças e garantir algum grau de autonomia financeira. No Candomblé, o pano da costa tornou-se símbolo de identidade e resistência, mantendo viva a estética e os saberes africanos em meio à brutalidade da escravidão. O vestuário, longe de ser apenas ornamento, era um espaço de afirmação cultural e religioso. Os tecidos e bordados carregavam histórias e identidades, transmitindo conhecimentos ancestrais que sobreviveram apesar das tentativas de apagamento colonial.


Maria Bonita, Lampião, Dadá e Corisco
Maria Bonita, Lampião, Dadá e Corisco

No cangaço, a relação entre poder e estética assumiu outra dimensão. Lampião e seus homens usavam uniformes bordados com símbolos místicos, demonstrando hierarquia e imponência. Os desenhos não eram meros enfeites, mas sim expressões visuais de crenças e mitologias que envolviam proteção espiritual e status dentro do bando. Entre as mulheres cangaceiras, os bordados dos bornais, feitos por mãos como as de Dadá, transformavam-se em códigos visuais de pertencimento e status.


A dualidade do trabalho manual têxtil persiste até hoje. Se por um lado ele carrega a marca da opressão e da normatização dos corpos femininos, por outro, é também uma ferramenta de resistência, de reinvenção e de memória. Nos tempos atuais, artistas e artesãs ressignificam esses saberes, utilizando bordados e tecidos para denunciar desigualdades, recontar histórias e criar novas narrativas. O fazer manual não é apenas um resquício do passado, mas uma prática viva, que se transforma e se adapta ao presente. Como escreveu a feminista sul-africana Olive Schreiner: "A caneta ou o lápis mergulharam tão fundo no sangue da raça humana quanto a agulha?". No Brasil (e no mundo), a resposta parece estar nos fios que tecem a nossa história – alguns para aprisionar, outros para libertar.


Este é o segundo de uma série de textos curtos que publicarei sobre a minha pesquisa: "as artes têxteis e o sensível" e que pretendo que, em breve, tornem-se livro.


REFERÊNCIAS:


DE CARVALHO, Vânia Carneiro. Gênero e Artefato: O Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultura Material 1870-1920. 1ª edição, São Paulo, edusp, 2021


PEREIRA, Hanayrá Negreiros de Oliveira. O Axé nas roupas: indumentária e memórias negras no candomblé angola do Redandá. 2017. 133 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.


BAHIA. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Pano da Costa./ Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC.- Salvador : IPAC; Fundação Pedro Calmon, 2009.


LIMA, Estefania e Seraphim, Gustavo. Caderno Urdume 1: Tricô e relações de Gênero, Instituto Urdume, 2020


STRAPI, Marjane. Bordados, Companhia das Letras


LIMA, Estefania. Caderno Urdume 2: Artes Manuais Têxteis e Moda Brasileira do século XIX, Instituto Urdume, 2021


SOUZA, Gilda de Mello e O Espírito das Roupas: A. Moda no Século XIX. São Paulo: Companhia das. Letras, 1987


FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX 2.ed. São Paulo : Ed. Nacional 1979


MELLO, F. P. Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço. CEPE Editora, 2022

 

 PARKER, Rozsika. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine. Bloomsbury Visual Arts, 2019


MC BRINN, J. Queering the Subversive Stitch: Men and the Culture of Needlework. Bloomsbury Visual Arts, 2021


Sesc Pinheiros, Instituto Urdume, et.al Glossário Colaborativo de Técnicas Têxteis Latino-Américana



IIntervação Hombres Tejedores: https://www.youtube.com/watch?v=QXSiQkQ__Mk



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